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quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

As causas do mal natural...

Terremoto de Lisboa, de 1755
 
Neste capítulo, temos notado uma distinção importante entre dois tipos de mal em nossa experiência. 1) Existe o mal que procede de causas "naturais", não influenciadas por motivos e ações humanos. Exemplos seriam loucura, doença, fome, inundações, morte, e os universais conflitos e crueldades da vida animal. 2) Existe aquilo que parece vir da liberdade humana, e que pode ser incluído sob a categoria geral de "pecado". Vimos como a filosofia tendeu por explicar o pecado humano em termos nos quais achou útil compreender o mal naturale também o problema do desespero que tal abordagem originou. Também vimos como a teologia cristã tem visto o mau uso da liberdade como a forma mais básica de mal, e o insight na natureza humana bem como a esperança de redenção do ser humano que esta abordagem tem nutrido. De fato, o pensamento cristão tem sido tão cônscio da liberdade como fonte de todo mal que tem tentado explicar o mal natural como resultado do pecado: sofrimento, fraqueza e morte têm sido considerados como punições de Deus ao ato livre do pecado. Para os cristãos modernos, contudo, tal entendimento do mal natural não é mais convincente ou desejável. Dependência, fraqueza e mortalidade são, evidentemente, partes da estrutura da finitude para serem consideradas resultados do pecado. Em vez disto, elas devem ser consideradas produtos da criação de Deus e entendidas, na medida do possível, sob esta luz. Em segundo lugar, poucos cristãos contemporâneos podem conceber a Queda como um ato histórico passado de Adão, pelo qual Deus puniu a raça inteira. Suas concepções da história primeva e de Deus proíbem tal entendimento da Queda e seus efeitos.
 
Um entendimento cristão moderno do mal natural, portanto, deve buscar utilizar os métodos tanto da filosofia como da teologia. Primeiro de tudo, deve tentar descobrir aqueles aspectos da estrutura da criação de Deus que dão origem à sua potencialidade para a bondade e à possibilidade de sua tragédia. Mas, em segundo lugar, só deve usar este método da filosofia de um modo que o entendimento cristão do pecado como resultado da liberdade não seja comprometido. Ao entender o mal natural como um resultado da criação em vez do pecado, o pensamento cristão não está, assim, reduzindo o poder e esperança de seu Evangelho. Pois o Evangelho nunca reivindicou erradicar o mal natural das vidas humanas: o que ele tem oferecido é a conquista do mal, e nesta vitória a erradicação do medo e da ausência de significado do mal natural. Vejamos, então, como o mal natural pode ser parcialmente entendido como surgindo da estrutura da boa criação de Deus.
 
Um dos importantes corolários da ideia cristã de criação é que os seres criados são, em sua estrutura essencial, dependentes e, contudo, reais. Desde que nenhuma criatura causa a si mesma, nenhuma delas pode, por si própria, permanecer independentemente de todo resto. Todas as criaturas são, portanto, partes dependentes do sistema de relações causais que é nosso mundo: toda criatura é dependente de criaturas além de si mesma para seu ser e para sua realização. Esta interdependência mútua de todas as criaturas é a base natural para os valores da vida humana. Não apenas nossa existência mesma, mas também as capacidades humanas para conhecimento, comunidade e mesmo para personalidade, surgem de nossas relações essenciais de dependência da natureza, da sociedade e daqueles aos quais amamos, e seriam inconcebíveis sem esta dependência original. Mas esta mesma interdependência de toda criação, que dá a cada ente a existência e faz do homem um "eu", faz com que cada criatura seja vulnerável a influências externas, às inseguranças da vida e, por fim, à destruição. A dependência contingente da vida criatural é a base tanto de seu poder criativo e bondade quanto de sua capacidade[1] para sofrer males naturais. Deus em Sua bondade tem, portanto, desejado a interdependência de todos os seres uns com os outros como a possibilidade de inteligibilidade e valor de suas vidas criaturais, mas Ele não necessariamente deseja todos os "maus" resultados do funcionamento desta interdependência mesma na natureza e história.

Por sua vez, a realidade do finito significa que a cada ente tem sido dada uma natureza definida, uma essência ou estrutura própria, ou como Richard Hooker disse, uma lei que determina seu modo de ser e de agir. Enquanto todas as criaturas permanecem dependentes de Deus e umas das outras em seu ser, mesmo assim cada criatura finita reage e age de acordo com sua própria natureza e modos de comportamento que governam esta natureza. Esta integridade estrutural de cada criatura é, além disso, a base de sua possibilidade para realização: pois a bondade de toda vida criatural é a realização da excelência da qual cada natureza é capaz. Se um homem busca agir ou como um anjo ou como um animal, ele fracassará em realizar suas potencialidades. É só quando sua vida é uma realização de seus poderes e capacidades humanos que ele pode experimentar a bondade de sua existência. Assim, a realidade e valor inerentes da vida criatural implicam a presença em toda parte da criação de estruturas definidas de ser finito e padrões definidos de comportamento da parte de todas as criaturas. Mas o fato de as criaturas seguirem as leis de suas naturezas é, também, a principal fonte dos males naturais. Células vivas crescem de acordo com a estrutura dinâmica que elas possuem enquanto células e, dadas certas condições, elas se tornarão um câncer maligno; e os sistemas de pressão de nosso clima se desenvolvem de acordo com a estrutura das forças meteorológicas e, dadas certas condições, eles gerarão tornados, inundações e secas. Os males naturais como doenças, destruição, fome e morte resultam, portanto, da integridade estrutural de uma criação relativamente independente, a qual opera de acordo com seus próprios padrões de desenvolvimento dados por Deus. Este, em Sua bondade, deseja que sua criação tenha esta natureza e padrão de comportamento definidos; Ele não deseja diretamente todos os efeitos deste caráter estrutural da criação.

Assim sendo, o principal ponto é que, em cada caso, a bondade e significado da vida criada envolve também a possibilidade de mal natural. Estes males resultam do sistema total de causação interdependente, o qual procede de acordo com os modos fidedignos de comportamento, ação e reação que as coisas finitas possuem. E, contudo, sem este sistema ordenado o mundo seria ininteligível e caótico. Se as causas que atuaram em um momento falhassem em atuar siimilarmente no momento seguinte, então nenhuma relação entre coisas finitas seria segura, e toda vida seria impossível. Se, por exemplo, respirar ar não fizesse alguém viver e inalar água não matasse, nenhum homem poderia existir, muito menos permanecer são. E em tal mundo caótico, toda ação moral seria impossível: eu não poderia ajudar meu próximo se alimentá-lo com pão em um momento significasse nutri-lo e, em outro, envenená-lo. Em um sentido real, a bondade da criação como uma arena inteligível e significativa para a vida natural e humana requer que Deus crie e sustente a integridade da causação ordenada, o próprio elemento na existência que torna possível o que chamamos mal natural. Mas ao criar um mundo de interdependência ordenada, um Deus bom não deseja diretamente todos os efeitos resultantes do funcionamento interno deste mundo. O que Sua bondade deseja é a estrutura ordenada de nossa existência, a qual é a possibilidade tanto de seu valor quanto de nossa experiência de mal natural. No próximo capítulo, nós veremos como uma profunda fé em Deus pode extrair, por meio do compromisso e serviço, o bem de nossa vida criatural, e ser imune a suas possibilidades de mal, de forma que mesmo calamidades naturais não seriam, para nós, de forma alguma necessariamente más. Entretanto, nós devemos reconhecer que este entendimento do mal natural como resultado da estrutura sistemática de nosso mundo só explica porque o que é chamado mal natural é um aspecto de nosso mundo. Ele não nos diz porque Deus nos deu este mundo especificamente. Isto é, porque Ele criou naturezas de tal tipo que suas interações sistemáticas resultem em tragédia. Neste sentido, o mal natural permanece ultimamente inexplicado na criação de Deus.

[1]Talvez a palavra mais apropriada, aqui, fosse "suscetibilidade" (nota do tradutor).
 
 GILKEY, Langdon. Maker of Heaven and Earth: the christian doctrine of creation in the light of modern knowledge. New York (NY): Anchor Books, 1959, p. 224-228. Tradução: Robson Barbosa da Silva.