"A entrada dos animais na Arca", de
Jacopo Bassano (c. 1570).
Entrevista concedida a Brad Kramer de
Biologos pelos estudiosos do Antigo Testamento John Walton e Tremper Longman
sobre o livro "Lost World of the Flood" (texto original aqui).
Por milhares de anos, a história de Gênesis sobre
Noé, a Arca e o Dilúvio tem cativado leitores. Com o advento da ciência moderna
– a qual tem acumulado um enorme corpo de evidência contra um recente dilúvio
global – esta história tornou-se um campo de batalha central do debate sobre as
origens. O moderno movimento criacionista da terra jovem foi fundado em um extenso
livro escrito como defesa científica de um dilúvio global. E em anos
recentes, uma “réplica”
em tamanho real da Arca de Noé, construída pelo ministério Answers in
Genesis, gerou manchetes nacionais e atraiu milhões de visitantes.
Aqueles comprometidos com a autoridade das
Escrituras e a validade da corrente principal do consenso científico
frequentemente sentem-se presos em uma situação impossível com a história do
Dilúvio bíblico. É possível afirmar ambos ao mesmo tempo? Em seu novo livro The Lost World of
the Flood: Mythology, Theology, and the Deluge Debate, os eruditos
bíblicos John Walton e Tremper Longman respondem a esta pergunta com um sonoro
“sim!”. A série de livros “Lost
World” de John Walton já tem exercido um enorme impacto sobre como muitos
evangélicos pensam acerca do Gênesis e a ciência, e este novo volume é uma
adição digna. Os leitores são desafiados a reexaminar radicalmente suas
pressuposições sobre o que realmente é a história do Dilúvio. Walton e Longman
argumentam persuasivamente que as leituras mais modernas da história do Dilúvio
subestimam a antiga perspectiva do texto e, portanto, tiram conclusões erradas
sobre os eventos que ele retrata.
Walton e Longman atenciosamente concordaram em
compartilhar suas ideias sobre como seu livro contribui para a conversação
sobre as origens, e como eles lidam com as mais espinhosas questões levantadas
pela história do Dilúvio.
BIOLOGOS: Vocês falam bastante no livro sobre os
problemas em aplicar modernos padrões da história ao Gênesis. Quais as maiores
diferenças entre as modernas noções de “história” e aquelas do antigo contexto
do Oriente Médio, no qual a Bíblia foi escrita? Por que é importante se
entender estas diferenças, à medida em que abordamos a história do Dilúvio como
leitores modernos?
JOHN WALTON: Em nossas ideias modernas sobre
história, valorizamos bastante o empirismo e o testemunho ocular. Eles estão
entre as mais importantes vias que buscamos para revelar “o que realmente
aconteceu”. Assim, determinamos a natureza da realidade histórica. Nesta visão,
não há lugar para Deus assumir um papel nos eventos – isto não seria
considerado “história real”. Em contraste, o mundo antigo, incluindo o Antigo
Testamento, põe muito mais ênfase naquilo que Deus (ou os deuses) está fazendo.
Suas abordagens são menos empíricas; mais teológicas. Eles não estão tão
interessados em reconstruir o evento quanto em interpretar teologicamente o
significado do evento.
BIOLOGOS: No primeiro capítulo, vocês usam o
exemplo de um relatório de tráfego de Chicago para demonstrar que qualquer tipo
de comunicação – incluindo a Bíblia mesma – é mais ou menos “clara” dependendo
de sua distância do tempo e cultura nos quais aquela comunicação se deu.
Contudo, vocês alegam que as principais mensagens da Bíblia são claras para
qualquer leitor, a despeito de seu nível de conhecimento acerca do antigo
contexto. Mas como todo o seu livro demonstra, a história do Dilúvio é muito
facilmente mal compreendida (e isto avaliando superficialmente) por leitores
modernos, por ela ser tão cheia de referências de “relatório de tráfico” às
antigas cosmologia, literatura e cultura que não mais fazem sentido para um
leitor moderno médio. Assim o que exatamente é “claro” acerca da história do
Dilúvio, para qualquer leitor em qualquer cultura? Como podemos falar sobre a
“clareza” da Bíblia de uma forma que respeite a enorme distância cultural entre
nós e o público original?
JOHN WALTON: A clareza que permeia a Bíblia inteira
encontra-se em seu testemunho da soberana execução dos planos e propósitos de
Deus. Este está trabalhando no mundo e nós testemunhamos este trabalhar na
medida em que sua história é compartilhada. Esta história envolve Deus
ordenando o mundo para que este funcione como um lar para si mesmo e para as
pessoas, com quem ele planeja trabalhar para continuar trazendo ordem ao mundo.
Esta história da obra e Deus no mundo e conosco nos ajuda a entender que ele
tem planos e propósitos, e que os tornou suficientemente manifestos para
podermos saber como participar deles. É a isto que os reformadores protestantes
se referiam quando falavam sobre a clareza das Escrituras. Eles não queriam
dizer que qualquer leitor pudesse facilmente entender as profundezas e tecnicalidades
de qualquer passagem, ou não teriam escrito centenas de volumes de comentários
e teologia.
BIOLOGOS: “A Bíblia descreve um dilúvio global,
contudo absolutamente nenhuma evidência geológica sustenta um dilúvio global”
(49). Vocês admitem no livro que esta conclusão atingirá muitos leitores ou
como uma contradição ou como uma refutação da autoridade da Bíblia. Como é
possível Gênesis 6-9 – que vocês insistem intentou ser lido como histórico –
descrever algo que não ocorreu e mesmo assim ser verdadeiro?
TREMPER LONGMAN: Uma inundação ocorreu, e
esse evento tornou-se o veículo para a história bíblica. Gênesis 1-11 como um
todo é “história teológica” que reconta eventos reais (a criação do cosmo e
humanidade por Deus, rebelião humana, o dilúvio, etc.) mas retrata estes
eventos em linguagem figurada afim de fazer importantes e verdadeiras
declarações teológicas. No caso do Dilúvio, parece que uma inundação regional
particularmente devastadora foi descrita hiperbolicamente (ou seja,
utilizando-se de exagero proposital) de forma a fazer importantes observações
sobre pecado, julgamento e graça, bem como sobre ordem, desordem e reordenação
divina. Gênesis 1-11, que fala acerca do passado remoto, é similar ao livro do
Apocalipse, o qual utiliza linguagem figurada (e. g., Jesus aparecendo
em um cavalo branco com uma espada saindo de sua boca em Ap. 19) para descrever
eventos reais no futuro distante.
BIOLOGOS: Na visão de vocês, “o relato bíblico
descreve o dilúvio retoricamente como um dilúvio global” (92). Vocês pensam que
os escritores bíblicos sabiam que o dilúvio que eles estavam descrevendo
não fora um evento global? A resposta para esta questão é importante –
especialmente para aqueles que creem na autoridade da Bíblia?
JOHN WALTON: A autoridade da Bíblia é sempre
relativa à forma literária na qual a mensagem é comunicada. Quando lemos a
Bíblia no modo que o autor tencionou que sua audiência a lesse, nós podemos
dizer que a lemos “literalmente”. Se ele utilizou hipérbole (como sugerimos que
fez), ele esperou que sua audiência reconhecesse isto como hipérbole (que,
cremos, eles teriam feito). Isto significa que a leitura literal requer de nós
ler isto como hipérbole, e qualquer outra leitura não respeitaria a autoridade
da Escritura. Hipérbole é um dispositivo literário apropriado para a narrativa
do dilúvio porque o Dilúvio teve um impacto e significado de uma ruptura da
ordem no cosmo. O exílio foi outro evento que foi percebido como uma catástrofe
cósmica (porque o templo, o lugar a partir do qual Deus mantivera a ordem, fora
destruído).
BIOLOGOS: “A realidade do evento não se encontra
em sua reconstrução, mas no lugar literário e teológico que o autor lhe dá”
(177). Esta perspectiva sobre a autoridade bíblica atingirá alguns como sendo
um declive escorregadio. Se vocês estiverem certos sobre o Dilúvio, podemos,
então, confiar que qualquer coisa na Bíblia realmente aconteceu? Como
sabemos quais passagens estão descrevendo acuradamente eventos reais e quais
não estão?
TREMPER LONGMAN: A história do dilúvio está descrevendo
um evento real, mas usando hipérbole para retratar esse evento real de forma a
transmitir a mensagem teológica do escritor. Isto não é exclusivo à história do
dilúvio. Podemos pensar na descrição da conquista em Josué 1-12,
particularmente à luz da declaração sumária no capítulo 12. A impressão que se
tem é que Josué e os israelitas conquistaram a totalidade de Canaã. Mas se
simplesmente virarmos a página para o capítulo 13 e começarmos a ler ou formos
a Juízes 1, sabemos que haviam vastas extensões de terra bem como muitos
cananeus ainda vivendo na terra. O relato em Josué 1-12 não estava tentando
enganar ninguém, mas pôr toda ênfase nos pontos positivos, de forma a celebrar
o início do cumprimento da antiga promessa da terra que fora dada a Abraão.
Existe base histórica para o relato da conquista, mas temos que ler a narrativa
no contexto cultural no qual ela foi escrita, um contexto no qual a hipérbole
era um padrão nos relatórios de batalha. E temos que ler a história do dilúvio
da mesma forma.
BIOLOGOS: Se o dilúvio bíblico é um recontar
hiperbólico de um evento real de inundação, então a Arca é uma versão
hiperbólica de um barco de madeira real? Noé é uma figura histórica real?
JOHN WALTON: O Dilúvio é um relato hiperbólico e
a Arca é, do mesmo modo, um relato hiperbólico. Isto não quer dizer que não
existiu nenhum dilúvio ou nenhum barco. Uma pessoa não pode ser hiperbólica
(penso que não, embora elas possam ser idealizadas, como o é Jó). Se há um
dilúvio (de algum tipo) e um barco (de algum tipo), então há motivos para se
crer que houve um Noé.
BIOLOGOS: Suspeito fortemente que alguns críticos
deste livro alegarão que vocês estão reinterpretando a Bíblia com base em
ideias científicas feitas por homens, em vez de julgar a ciência pela Palavra
de Deus. Como vocês responderiam a esta crítica?
TREMPER LONGMAN: Eu sugeriria que, algumas vezes,
a ciência pode nos ajudar a ler melhor a Bíblia. A clássica Confissão Reformada
Belga, em seu Artigo 2, nos diz que Deus nos fala através de dois livros, a
Bíblia e a natureza:
Nós O conhecemos por dois
meios: Primeiro: pela criação, preservação e governo do Universo, o qual está
perante nossos olhos como o mais elegante dos livros, no qual todas as
criaturas grandes e pequenas são como as muitas letras que nos levam a ver
claramente as coisas invisíveis de Deus, assim como o seu eterno poder e
divindade, como nos diz o apóstolo Paulo em Rm 1.20. Todas essas coisas são
suficientes para convencer os homens e torná-los indesculpáveis. Segundo: Ele
se faz conhecer mais clara e plenamente através da Sua Santa e Divina Palavra,
tanto quanto nos é necessário nesta vida, para a Sua glória e nossa salvação.
Assim, quando ambas são interpretadas
corretamente, elas nunca entrarão em conflito. Independentemente da ciência,
deveríamos reconhecer a descrição figurativa dos eventos passados que Gênesis
1-11 nos fornece (tardes e manhãs anteriores à criação do sol, lua e estrelas;
Deus, um ser espiritual, soprando no pó para criar o primeiro humano). Quando
se trata do dilúvio, o livro de Deus da natureza é claro: não houve um dilúvio
global. Então, isto deveria nos ajudar a ver que a Bíblia está utilizando uma
descrição hiperbólica de uma inundação regional para apresentar sua mensagem
teológica.
BIOLOGOS: “A humanidade bem que merece sofrer
extinção após sua reiterada e profunda rebelião contra aquele que a criou”
(106). Esta linha do livro de vocês, explicando a razão teológica para a total
destruição da humanidade no Dilúvio, encoraja algumas questões familiares dos
céticos. Os bebês que morreram no Dilúvio também merecem morrer? E
quanto aos incontáveis animais que não tinham nada a ver com a maldade humana?
Por que Deus simplesmente não destruiu os piores transgressores e deixou os
inocentes incólumes? Parece com o equivalente teológico de se lidar com o
problema de um inseto com um potente explosivo. Qual a abordagem de vocês para
questões como estas? O Deus do Dilúvio pode ser reconciliado com o Deus de Amor
supremamente revelado em Cristo?
TREMPER LONGMAN: Esta questão é profundamente
perturbadora para aqueles de nós vivendo hoje em dia, particularmente no
relativamente calmo mundo ocidental. Eu não posso aborda-la plenamente aqui,
mas faço em meu próximo livro Wrestling with the Old Testament: Confronting
the Challenge of Evolution, Divine Violence, Historicity, and Sexuality
(Baker) que deve sair no final de 2019. Deixe-me
brevemente sugerir que esta questão não seria algo que perturbaria os antigos
leitores, os quais viviam em uma cultura assolada pela violência. E isto também
é verdade para as pessoas de hoje que tenham testemunhado ou experimentado a
perversidade em suas vidas. Tome o teólogo de Yale Miroslav Volf, que
cresceu na antiga Yugoslavia e testemunhou extrema brutalidade arrasando sua
comunidade. Esta experiência levou-o a reconsiderar a natureza do amor de Deus,
como ele relata em seu excelente livro Free
of Charge: Giving and Forgiving in a Culture Stripped of Grace: “Embora
eu costumasse me queixar da indecência da ideia de ira divina, cheguei à
conclusão de que teria que rebelar-me contra um Deus que não se irasse à vista
do mal no mundo. Deus não é irado a despeito de ser amor. Deus é irado porque
Deus é amor” (138-139). A descrição daqueles que morreram no dilúvio é que sua
maldade era grande e “que toda inclinação de seus pensamentos [...] era má,
apenas, o tempo todo” (Gn 6.5). Embora esta afirmação seja outro exemplo da
descrição hiperbólica do dilúvio (a qual também inclui a extensão das águas e a
devastação), ela comunica a profundidade e amplitude do pecado humano que levou
ao juízo de Deus. Verdade seja dita, a Bíblia não conhece nenhuma categoria de
pessoas “inocentes” que morreram no dilúvio. Mesmo bebês têm uma propensão para
o egoísmo que está em desarmonia com a intenção criativa de Deus para suas
criaturas humanas – e nenhuma criança (que não seja Cristo) cresceu para ser
sem pecado.
BIOLOGOS: As referências no Novo Testamento ao
Dilúvio não provam que ele seja um evento real? Os escritores do NT sabiam que
o “ponto de referência” histórico do Dilúvio fora uma catástrofe regional em
vez de um evento global? Como os autores do Novo Testamento podem ser
inspirados se eles estão se referindo a eventos que não ocorreram?
JOHN WALTON: É claro que o NT apresenta o Dilúvio
como um evento real, e nós não estamos negando que ele foi um evento
real. A pergunta que frequentemente queremos fazer diz respeito ao escopo do
evento. Ambos o Antigo e o Novo Testamento estão interessados no significado
cósmico e teológico do evento. Não é incomum que o AT e o NT ofereçam cada um
sua própria interpretação dos eventos – e isto é perfeitamente adequado desde
que ambos são inspirados. Um evento pode ser interpretado de diferentes
perspectivas. Assim, por exemplo, Reis e Crônicas interpretam diferentemente os
acontecimentos da monarquia, mas nós consideramos ambas as interpretações
verdadeiras. Seja qual for o escopo do dilúvio, ele foi um evento real com
significado cósmico e teológico que é desenvolvido nos contextos do AT e do NT.
Tradução: Robson Barbosa da Silva.
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