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quinta-feira, 17 de maio de 2018

John Henry Newman a J. Walker de Scarborough sobre a teoria da evolução de Darwin...



Birmingham, 22 de maio de 1868

Meu querido Canon Walker

Adquiri [o livro de][1] Smith sobre o Pentateuco imediatamente por sua sugestão, e tenho estado muito interessado no que tenho lido dele – mas não o li o suficiente para adentrá-lo como um todo [W. Smith, The Book of Moses or the Pentateuch in its Authority, Credibility, and Civilisation, Londres, 1868]. A obra do Sr. Beverly também chegou, mas sem nenhum capítulo suplementar. Ore transmitindo meu agradecimento ao autor desconhecido [The Darwinian Theory of the Transmutation of Species examined by a Graduate of the University of Cambridge, Londres, 1868]. É um cuidadoso e severo exame da teoria de Darwin – e mostra, como é muito certo que ele seria capaz de fazer, os vários pontos que devem ser bem elaborados antes que ela possa ser coerente. Não temo a teoria tanto quanto ele aparenta temer – e parece-me que ele é, às vezes, duro com Darwin, que [sic] ele poderia tê-lo interpretado gentilmente. Não parece, para mim, resultar que a criação seja negada porque o Criador, milhões de anos atrás, deu leis à matéria. Ele primeiro criou a matéria e, então, criou leis para a mesma – leis que deveriam construí-la em sua maravilhosa beleza presente e acurado ajuste e harmonia de partes gradualmente. Nós não negamos ou circunscrevemos o Criador, por sustentarmos que ele criou a mente humana, originária de auto-ação, a qual tem quase um dom criativo; muito menos, então, negamos ou circunscrevemos seu poder se sustentarmos que Ele deu à matéria tais leis que, como por sua ação cega, moldaram e construíram através de inumeráveis eras o mundo como o vemos. Se o Sr. Darwin neste ou naquele ponto de sua teoria entra em colisão com a verdade revelada, isto é outro assunto – mas não imagino que o princípio de desenvolvimento, ou o que tenho chamado “construção”, o faça. Quanto ao Design Divino, não é um exemplo de Sabedoria e Design incompreensível e infinitamente maravilhosos ter dado certas leis à matéria a milhões de eras atrás, os quais, segura e precisamente, elaboraram, no longo curso daqueles séculos, aqueles efeitos que Ele desde o início tem proposto [?][2]. A teoria do Sr. Darwin não precisa, então, ser ateísta, seja verdadeira ou não; ela pode, simplesmente, estar sugerindo uma ideia mais ampla da Presciência e Habilidade Divinas. Talvez o seu amigo tenha uma pista mais segura que eu, que nunca estudei o assunto, para guiá-lo, e eu não [vejo] que a evolução acidental dos seres orgânicos seja inconsistente com o design divino – é acidental para nós, não para Deus.

Muito sinceramente seu em Cristo, John H. Newman

 P.s. Por que o princípio de geração não é ateísta, se o princípio de desenvolvimento o é? Não conhecêssemos o fato de que espécies e raças saírem, em sucessão, de um casal, poderíamos dizer que esta era uma teoria inconsistente com a doutrina da criação. E, a fortiori, pode-se insistir: “aqui, o encontro acidental e casamento de duas pessoas, ou o intercurso pecaminoso, obrigarão o Todo-poderoso a criar uma alma a todo o momento”. Portanto (não apenas o corpo, mas) a alma não é criada, mas é a consequência acidental da vontade humana, etc., etc..

The Letters and Diaries of John Henry Newman, editado por C.S. Dessain e T. Gornall, vol. XXIV (Oxford: Clarendon Press, 1973), p. 77-78.

Artigo original aqui. Tradução: Robson Barbosa da Silva.



[1] Acréscimo para fins de inteligibilidade (nota do tradutor).
[2] Sem este sinal, a sentença parece não coerir com a ideia geral do texto (nota do tradutor).

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Nós cremos na criação...


Criação dos animais (1551), de Jacopo Robusti, o "Tintoretto" (1518-1594).

Artigo do doutor Richard H. Bube (1927-), publicado em 1971 no Journal of the American Scientific Affiliation, do qual o mesmo era editor. O autor é professor emérito de Ciência de Materiais e Engenharia Elétrica na Universidade de Stanford. O texto representa o posicionamento da American Scientific Affiliation (ASA), a mais antiga organização de cientistas cristãos nos Estados Unidos, no que tange à doutrina da criação. Boa leitura.

Deveria ser bem conhecido dos leitores do Journal ASA que a ASA não toma uma posição oficial em questões controversas. A criação não é uma questão controversa. Eu não tenho hesitação alguma em afirmar: “Nós cremos na criação”, por todos os membros da ASA.

            A doutrina bíblica da criação é uma das mais ricas doutrinas reveladas por Deus a nós. Ela nos revela que o Deus que nos ama é, também, o Deus que nos criou, bem como a todas as coisas. Isto imediatamente estabelece a relação entre o Deus da fé religiosa e o Deus da realidade física. É por causa da criação que confiamos na realidade de uma estrutura física e moral no universo, o qual podemos explorar enquanto cientistas e experimentar enquanto pessoas. É por causa da criação que sabemos que o universo e tudo nele dependem, momento a momento, do poder sustentador e atividade de Deus. É por causa da criação que sabemos que não somos o produto final de processos sem significado em um universo impessoal, mas homens e mulheres feitos à imagem de um Deus pessoal. É pela formulação de “criação a partir do nada” que afirmamos que Deus criou o universo livre e separadamente, e rejeitamos as alternativas do dualismo e panteísmo. Adorar a Deus como Criador é enfatizar ambas Sua transcendência sobre a ordem natural e Sua proximidade na ordem natural. É reconhecer que Seu modo de existência enquanto Criador é completamente outro em relação ao nosso modo de existência enquanto criados. Apreciar a Deus como Criador é reconhecer aquilo que Ele criou como intrinsecamente bom; a base lógica para a investigação científica, a garantia do significado pessoal último na vida, e a natureza do mal como uma aberração em uma criação boa são todas intrínsecas a tal apreciação. Nós acreditamos na criação. É impensável para o cristão fazer outra coisa.

Por causa deste caráter fundamental da doutrina bíblica da criação, é lamentável quando a palavra “criação” é utilizada de modo estreito e restritivo para referir-se não ao fato da criação, mas ao possível modo da atividade criativa, usualmente àquele modo conhecido como criação fiat. Quando está implícito que criação e evolução são, necessariamente, mutuamente exclusivas, ou quando o termo “criação” é utilizado como se esta fosse, essencialmente, um mecanismo científico para as origens, uma profunda confusão de categorias está envolvida. A implicação é, intencionalmente ou não, que, se a evolução deveria ser o mecanismo apropriado para o crescimento e desenvolvimento das formas vivas, então a criação teria que ser rejeitada. Colocar tal escolha é causar dano básico à posição cristã. É jogar diretamente nas mãos daqueles evolucionistas que argumentam que seu entendimento da evolução acaba com o significado teológico da criação. Se tal evolucionista está errado ao acreditar que sua descrição biológica elimina a necessidade de uma descrição teológica, o cristão antievolucionista está errado por crer que sua descrição teológica deve tornar qualquer descrição biológica impossível.

A chave para muita da controvérsia sobre a evolução repousa no reconhecimento da necessidade e propriedade de descrições, em níveis diferentes de realidade, do mesmo fenômeno. Mesmo uma descrição biológica completa não elimina a necessidade de uma descrição teológica, assim como uma completa descrição teológica não afasta a possibilidade de uma descrição biológica compatível. A evolução pode ser considerada sem negar-se a criação; a criação pode ser aceita sem excluir-se a evolução. A evolução é uma questão científica no nível biológico; seria, de fato, lamentável se a uma questão científica fosse permitida tornar-se o ponto crucial para a fé cristã.

A filosofia evolucionista – digamos, em vez disto, a religião evolucionista – pode muito bem ser algo bem diferente. Em sua forma anticristã, tal evolucionismo filosófico pode envolver uma exaltação do homem, uma negação da realidade da culpa moral em qualquer sentido teológico e, portanto, uma interpretação da vida e morte de Jesus como nada mais que um bom exemplo. Nesta visão, o desenvolvimento e melhoria contínuos são inevitavelmente assegurados à medida que o homem, agora cônscio da evolução, completa por si mesmo o processo das eras. Tal evolucionismo é um sistema de fé que compete pela lealdade religiosa dos homens, e contra a qual a fé cristã é chamada a pôr-se de pé. Mas se é verdade que o evolucionista deve perceber que tem pouco apoio científico para extrapolar a evolução biológica em um princípio geral de vida, o antievolucionista deve perceber que ele tem pouca justificativa religiosa sobre a qual atacar uma teoria científica que trata de mecanismos biológicos. Quão trágico frequentemente é quando cristãos, buscando evitar os erros do evolucionismo filosófico, disseminam a mentira de que a eficácia da fé no sacrifício de Cristo depende, efetivamente, da aceitação dogmática da criação fiat e da rejeição dogmática de quaisquer processos evolutivos.

Nós cremos na criação. Nós louvamos ao Senhor por esta fé. Mas evitemos ou colocar a criação e a evolução como alternativas intrinsecamente antitéticas, a aceitação de uma exigindo a rejeição de outra, ou apresentando a criação como um mecanismo científico alternativo à evolução, como se a boa ciência devesse, em última instância, levar à verificação da criação fiat e à falsificação da evolução.

Artigo original aqui. Tradução: Robson Barbosa da Silva.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Princípios Básicos da Evolução: Tornando-se Humanos, Parte 1: Eva Mitocondrial e Adão do Cromossomo Y

 

Esta série de posts pretende ser uma introdução básica à ciência da evolução para os não especialistas. Você pode ver a introdução da série aqui. Neste post, colocaremos a “Eva mitocondrial” e o “Adão do cromossomo Y” em seus contextos paleontológicos.

            No último post desta série, chegamos, finalmente, às origens de nossa própria espécie, Homo sapiens. Com base nos mais antigos restos no registro fóssil, sabemos que humanos anatomicamente modernos estavam presentes na África a 200 mil anos atrás. Deste ponto de partida, nossa espécie estava pronta para expandir-se para a Ásia e Europa, começando por volta de 100 KYA[1] (isto é, 100 kiloanos[2], uma abreviação para 100 mil anos atrás), e, em significativa medida, a cerca de 50 mil anos. Fazendo isto, seguiríamos e, mais tarde, encontraríamos outras espécies Homo que teriam deixado a África antes de nós. Tais grupos incluem os neandertais e denisovanos, bem como o Homo erectus, o qual, como temos visto, também deixou a África e estava amplamente distribuído na Ásia, incluindo as populações na Indonésia que formariam a base para as seminais descobertas de Eugene Dubois. Os neandertais e denisovanos compartilham uma população ancestral comum a cerca de 400 mil anos, embora não seja claro se sua população ancestral comum deixou a África ou se suas linhagens se separaram na África e ambos os grupos emigraram independentemente. Quanto ao Homo erectus, os restos fósseis mostram que ele estava amplamente distribuído na Ásia desde 1,8 milhão de anos atrás. É nesta época que alcançamos um ponto na evolução humana que muitos evangélicos têm, ao menos, ouvido falar – o último ancestral comum fêmea de todos os humanos modernos, popularmente conhecida como “Eva mitocontrial”, e o equivalente macho – nosso último ancestral comum macho, popularmente conhecido como “Adão do cromossomo Y”.



Relações entre os hominíneos e tempo aproximado de divergência para as linhagens que levam aos neandertais, denisovanos e humanos modernos.

Eva mitocondrial e Adão do cromossomo Y: ancestrais comuns, mais não ancestrais únicos.

            Espere só um segundo, você diz – não há forte evidência que os humanos modernos descendem de uma população que nunca chegou a ter menos que 10 mil indivíduos (e isto é um tópico de significativas consideração teológica)? Como é possível, então, que todos os humanos compartilhem uma única mulher e um único homem como ancestrais comuns? A resposta é que todos os humanos compartilham um único homem e uma única mulher como ancestrais comuns – mas que estes ancestrais não são nossos únicos, ou exclusivos, ancestrais. Em vez disto, ambos vêm daquela população de cerca de 10 mil indivíduos – a evidência para a qual (e as questões teológicas que isto levanta) discutiremos nos próximos posts.

            Entender como os humanos podem ter ancestrais únicos maternos e paternos dentro de uma população geneticamente diversa requer que façamos uma breve excursão na genética, e especificamente como certas formas de DNA são herdadas. Como discutimos previamente, nossas mitocôndrias têm seu próprio pequeno cromossomo como remanescente de seu tempo como uma bactéria de vida livre. Em humanos, as mitocôndrias são transmitidas apenas da mãe para a criança. O esperma não doa mitocôndria para o ovo fertilizado. Como resultado, o DNA mitocondrial é herdado através da linhagem materna, apenas, em contraste com o DNA cromossômico regular, o qual é herdado através de ambas as linhagens materna e paterna. O padrão materno-específico de herança para o DNA mitocondrial se presta a que certas variantes mitocondriais “dominem” uma população, o que podemos ilustrar utilizando uma grande árvore familiar, ou pedigree (uma nota acerca dos símbolos do pedigree: círculos representam fêmeas; quadrados representam machos. Uma barra horizontal conectando-os representa um cruzamento; e uma barra vertical partindo de um cruzamento é conectada à descendência daquele cruzamento).

No pedigree abaixo, vemos uma grande família estendida que mostra a herança de três variantes mitocondriais (marcadas com cores diferentes). Para manter o pedigree compacto o suficiente para mostrar, as linhas tracejadas indicam cruzamentos que se conectam entre si de um lado para o outro. Como podemos ver, a variante vermelha “Mito 3” tomou, ou “varreu”, esta população. Todos os indivíduos nas gerações mais recentes desta família compartilham a mulher do alto à direita como ancestral comum para sua mitocôndria:


            Usando o mesmo pedigree, tracemos agora algumas variantes hipotéticas do cromossomo Y. O cromossomo Y, obviamente, é passado, apenas, de pai para filho, do que resulta um padrão paterno-específico de herança. Este padrão, como o padrão materno-específico para a herança mitocondrial, pode também levar a certas variantes “varrerem” facilmente uma população. Suponhamos que esta família também tem três variantes do cromossomo Y nas gerações mais antigas:


Neste caso, a variante cromossomo Y “1” varre a população, e todos nas gerações mais recentes têm o homem marcado em amarelo como seu ancestral comum macho mais recente.

            Agora que identificamos os ancestrais comuns feminino e masculino das gerações mais recentes neste pedigree, podemos indicar que eles não são seus ancestrais únicos. Ambos a “Eva” mitocondrial e o “Adão” do cromossomo Y desta família vêm de uma grande população – e podemos mostrar isto facilmente observando a variação presente no DNA cromossômico regular – o tipo transmitido através de ambas linhagens materna e paterna.

            Retornemos exatamente ao mesmo pedigree, mas agora ilustrando a variação no DNA cromossômico regular com diferentes cores. Agora é muito mais difícil para esta variação varrer uma população em curto prazo, porque esta variação pode ser transmitida por ambos machos e fêmeas:


            Em contraste com o padrão do DNA mitocondrial e do cromossomo Y, podemos ver uma diversidade de variação no DNA cromossômico regular transmitido das mais antigas gerações às mais recentes. Por exemplos, considere o casal do meio na primeira geração. Embora sua variação mitocondrial e do cromossomo Y tenha sido perdida nesta população, a variação cromossômica regular do macho (representada pela linha azul) chegou até o presente dia sem problema. Sendo assim, temos um “registro” de sua ancestralidade na população, mesmo após sua variação do cromossomo Y ter sido perdida. Similarmente, considere a fêmea no casal da esquerda na primeira geração. Embora sua variação mitocondrial tenha sido perdida, sua variação cromossômica regular (representada pela linha vermelha) foi transmitida. Assim, a quantidade total de variação genética nos cromossomos regulares é uma ferramenta para determinar quantos ancestrais esta população possui.

            É esta variação no DNA cromossômico regular que indica que esta população não tem sofrido uma redução drástica no tamanho populacional no passado recente – e que, embora possamos apontar ancestrais comuns recentes para o DNA mitocondrial e para o cromossomo Y, estes ancestrais comuns vêm de uma população geneticamente diversa. Assim também com nossa própria linhagem – também temos um ancestral comum materno para nosso DNA mitocondrial (a “Eva” mitocondrial), bem como um ancestral comum paterno para o DNA do cromossomo Y (“Adão” do cromossomo Y). A diversidade de nosso DNA cromossômico regular, contudo, mostra-nos que estes indivíduos faziam parte de uma grande população geneticamente diversa. Como no exemplo com o qual temos trabalhado, sabemos disto por causa da diversidade que vemos no DNA cromossômico regular nas populações humanas modernas.

            Então, por que o entusiasmo com estes dois indivíduos? De várias formas, isto é um exagero. Estes indivíduos são notáveis apenas por serem os últimos ancestrais comuns de só uma pequena parte de nossos genomas (DNA mitocondrial e do cromossomo Y, respectivamente). Embora seja um fato interessante, eles não eram notavelmente diversos de outros em suas respectivas populações. Se os cientistas não os tivessem rotulado com nomes aludindo à narrativa bíblica, eles provavelmente seriam pouco conhecidos entre os cristãos.

Localizando a Eva mitocondrial e o Adão do cromossomo Y no tempo

            As estimativas atuais colocam a Eva mitocondrial logo após o alvorecer do Homo sapiens como registrado no documento fóssil, a cerca de 180 mil anos. Isto a coloca dentro de nossa espécie. Até recentemente, o Adão do cromossomo Y era datado mais recentemente, a cerca de 50 mil anos, o tempo de significativa emigração humana da África. Recentemente, contudo, uma rara variação do cromossomo Y  que empurra o último ancestral comum de todo o DNA do cromossomo Y humano para aproximadamente 210 mil anos atrás foi encontrada nos humanos modernos – o que, curiosamente, está no limite de nossa espécie como registrado no documento fóssil. Desde que nossa espécie surgiu como uma população contínua que divergiu gradualmente de outros hominíneos, não existe razão alguma para esperar que toda nossa variação de DNA retorne a um ancestral comum (ou coalesça, para usar o termo técnico) dentro de nossa espécie. De fato, algumas de nossas variações não coalescem dentro de nossa espécie ou mesmo na população de nosso ancestral comum com o chimpanzé. Como temos discutido antes, “espécie” é um termo de conveniência que os biólogos utilizam para tentar desenhar uma linha no que é, de fato, um gradiente de mudança gradual – e, biologicamente, nossa espécie não é exceção.

            No próximo post nesta série, exploraremos mais ainda os difusos limites de nossa própria espécie enquanto viajamos com alguns de nossos ancestrais para fora da África – e encontramos outras espécies de hominíneos no processo.

Artigo de Dennis Venema postado em 13/03/2014 (original em BioLogos). Tradução: Robson Barbosa da Silva.

[1] Abreviação de “kiloyears”, ou mil anos (nota do tradutor).
[2] Não encontramos esta palavra em português ou algo equivalente ao termo inglês “kiloyears” (nota do tradutor).

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Tomás de Aquino vs Design Inteligente




Um dia recebi uma chamada telefônica de um professor de filosofia de uma faculdade religiosa próxima. Ele tinha acabado de voltar de uma conferência internacional sobre os desafios à biologia evolutiva por parte da teoria do design inteligente (DI). Havia certa urgência no tom do professor, então concordei em encontrá-lo. Ocorre que ele tinha uma queixa a fazer, pois abriu nosso encontro me fazendo uma série de perguntas: onde estão os tomistas? Onde estão os católicos? Por que você não está lá fora defendendo a nós, que advogamos o DI? Afinal, estamos do mesmo lado ou não? Ele explicou que os organizadores da conferência convidaram vários tomistas para participar, e ele ficou consternado com o fato de que, longe de expressar simpatia com o movimento do DI e seu desafio ao darwinismo, eles eram bastante críticos em relação ao mesmo movimento. Talvez se sentindo um pouco traído, ele queria perguntar a mim, um tomista, o que estava acontecendo.

            Desde o tempo de Charles Darwin tem havido vigoroso debate entre criacionistas cristãos e evolucionistas darwinistas. Nenhum dos lados tem estado especialmente interessado no que tomistas católicos – uma minoria, com certeza – podem contribuir para a discussão. Na medida em que filósofos trabalhando na tradição tomista são levados em conta, ambos os lados parecem insatisfeitos. Darwinistas seculares frequentemente veem os tomistas como apenas outro tipo de literalistas tentando substituir a boa biologia pelo livro de Gênesis. Por outro lado, os criacionistas protestantes frequentemente têm visto os tomistas como já a meio caminho do secularismo e naturalismo, dependendo muito pouco de uma leitura literal das Escrituras e demais do raciocínio filosófico.

            Agora, os defensores do DI têm revivido o debate com a biologia evolutiva sobre bases científicas. Este novo desafio ao darwinismo tenta mostrar que a evidência biológica dá menos suporte à evolução gradual das espécies do que à criação direta por um Designer divino. Dada a sofisticação filosófica de seus argumentos, é talvez natural que os teóricos do DI assumam que eles tenham aliados entre os tomistas tradicionais que são conhecidos por sua defesa sistemática da doutrina da criação.

            Contudo, como meu amigo descobriu, o movimento do DI não tem sido, em geral, bem recebido nos círculos tomistas. Assim, a questão é: por que não? Por que os tomistas, que compartilham muitas das mesmas preocupações acerca da secularização de nossa sociedade, não têm sido mais solidários? Por que tantos tomistas têm hesitado em se unir aos teóricos do DI em sua campanha contra o darwinismo? Por que alguns tomistas parecem mesmo um pouco hostis ao projeto do DI?

            Um pouco de atenção na filosofia tomista da criação pode ajudar a responder estas questões. Mas importante, investigar a frieza do tomismo em relação à teoria do design inteligente pode ajudar a tirar o debate de seu estado polarizado “evolução x criação” para uma discussão que é mais produtiva filosoficamente. Uma olhada no entendimento tomista do relacionamento de Deus com a natureza pode, mesmo, sugerir uma terceira alternativa para as já conhecidas posições dos darwinistas e teóricos do DI.

Uma crise anterior sobre a criação

            No período em que Tomás de Aquino viveu, ocorria uma revolução científica que desafiou seriamente a doutrina cristã tradicional da criação. Desde a época da Igreja primitiva, os cristãos ortodoxos têm sustentado que o universo fora criado por um Deus transcendente que é totalmente responsável pela existência daquele e de tudo que ele contém. Este é um ensino que os cristãos herdaram dos judeus e compartilharam com os de fé islâmica.

            No começo do século XIII, contudo, uma grande mudança histórica ocorreu na Europa Ocidental, conforme as obras dos antigos filósofos naturais e matemáticos gregos tornaram-se disponíveis em latim pela primeira vez. Especialmente importantes foram os trabalhos de Aristóteles, que elaborou os princípios básicos da natureza e desenvolveu uma metodologia de pesquisa científica que prometia, com o tempo, desvendar os segredos do universo.

            Esta revolução científica causou grande entusiasmo entre os acadêmicos falantes do latim nas então novas universidades europeias. Eles pesquisaram avidamente em muitas das ciências naturais e, essencialmente, fundaram a tradição histórica das ciências experimentais que continua até hoje. Não demorou muito para que houvesse progresso em áreas como astronomia matemática, óptica, meteorologia, botânica, zoologia e outras ciências.

            Ao mesmo tempo, a nova ciência era motivo de preocupações, pois alguns teólogos viram nela um desafio para a doutrina da criação. Especificamente, os naturalistas gregos sustentavam que “algo não pode vir do nada”. De fato, os filósofos gregos utilizavam seu princípio fundamental como base para afirmar que o universo é eterno: Não pode haver nem um primeiro nem um último movimento. Pareceu para os contemporâneos de Tomás de Aquino que tal ideia era incompatível com a doutrina da criação ex nihilo.

             Neste debate medieval aparece Aquino, o qual raciocinou assim: Deus é o autor de toda verdade; o objetivo da pesquisa científica é a verdade; portanto, não pode haver nenhuma incompatibilidade fundamental entre os dois. Desde que entendamos a doutrina cristã apropriadamente e façamos bem nossa ciência, acharemos a verdade.

            Contudo, o que dizer do aparente conflito entre a noção de criação a partir do nada e o princípio científico de que para todo movimento ou estado natural existe um movimento ou estado antecedente? Ver um conflito aqui, diz Aquino, é resultado de uma confusão em relação à natureza da criação e da mudança natural. É um erro que pode ser chamado de “falácia cosmogónica”.

Do nada

            Aquino argumentou que tal erro foi distinguir entre causa no sentido de uma mudança natural de certo tipo e causa no sentido de um trazer à existência último algo a partir de nenhum estado antecedente. Creatio non est mutatio, diz Aquino: o ato de criação não é mudança de algum tipo.

            Os filósofos naturais gregos estavam bastante corretos em dizer que do nada, nada vem. Mas por “vir” eles queriam dizer uma mudança de um estado para outro, a qual requer alguma realidade material subjacente. Ela também requer alguma possibilidade pré-existente para esta mudança, uma possibilidade que reside em alguma coisa.

             A criação, por outro lado, é o causar radical da existência inteira de tudo o que existe. Ser a causa completa da existência de algo não é o mesmo que produzir uma mudança em algo. Não é uma questão de tomar algo e transforma-lo em outra coisa, como se houvesse alguma matéria primordial a qual Deus utilizara para criar o universo. Em vez disto, a criação é o resultado da agência divina sendo totalmente responsável pela produção, repentina e completamente, da totalidade do universo, com todas as suas entidades e operações, de absolutamente nada pré-existente.

             Estritamente falando, pontua Aquino, o Criador não cria algo do nada no sentido de tomar algum “nada” e fazer algo deste. Isto é um erro conceitual, porque trata “nada” como alguma coisa. Pelo contrário, a doutrina cristã da criação ex nihilo afirma que Deus fez o universo sem fazer ele de qualquer outra coisa. Em outras palavras, qualquer coisa deixada inteiramente por si mesma, completamente separada da causa de sua existência, não existiria – ela seria absolutamente nada. A causa última da existência de qualquer coisa e todas as coisas é Deus Criador – não de algum nada, mas simplesmente do nada.

            Olhando desta maneira, a nova ciência do século XIII, da qual nossa ciência moderna se desenvolveu, não era uma ameaça para a tradicional doutrina cristã da criação. Conhecer as causas naturais dos entes naturais é algo diferente de saber que todos os entes e operações naturais dependem radicalmente da causa última da existência de todas as coisas: Deus o criador. Criação não é mudança. Criação é uma causa, mas de um muito diferente (de fato, único) tipo. Só evitando a falácia cosmogônica alguém é capaz de entender corretamente a doutrina cristã da criação ex nihilo.

Tome o hipopótamo, por exemplo

            Duas implicações desta distinção entre mudança e criação são dignas de nota aqui. Uma é que Deus criou sem gastar tempo para criar: Ele cria eternamente. Criação não é um processo com um começo, um meio e um fim. É, simplesmente, uma realidade: a realidade da completa dependência do universo da agência de Deus. A outra implicação é a radical alteridade da agência de Deus. A causalidade produtiva de Deus é diferente daquela de qualquer causa natural, porque Deus não apenas produz o que ele produz de repente, sem qualquer processo, mas também sem requerer qualquer coisa pré-existente ou quaisquer pré-condições. Deus não age como parte de um processo, nem inicia um processo onde não havia nenhum antes. Não existe antes algum para Deus; não existe nenhum estado pré-existente do qual a ação de Deus procede. Deus é total e imediatamente presente como causa de todos e de quaisquer processos.

            Com base nestas implicações para o correto entendimento da criação, os tomistas fazem distinção entre a existência e as operações dos entes naturais. Deus causa a existência dos entes naturais de um modo tal que eles sejam os agentes de suas próprias operações. De fato, se este não fosse o caso, então Deus não teria criado este ente natural, mas outro. O salmão nada corrente acima para desovar. Ao criar o salmão, Deus criou um peixe que se reproduz deste modo. Se Deus criou o salmão sem sua agência reprodutiva natural, então ele não criou o salmão, mas outra coisa.

            Considere outro exemplo: um grande mamífero quadrúpede, como o hipopótamo, dá a luz a seus filhotes. Como? Bem, poderíamos responder dizendo que “Deus faz isto”. No entanto, isto poderia, apenas, significar que Deus criou o hipopótamo – de fato, a ordem dos mamíferos[1] – com a morfologia, composição genética, etc., que são as causas de o mesmo animal dar a luz. Deus não “interfere” nas operações normais do hipopótamo para causar sua procriação. Se alguém pensar “Deus faz isso”, significando que Deus intervém na natureza dessa maneira, este alguém seria culpado da Falácia Cosmogônica.

            Agora, se esta distinção entre o ser de algo e suas operações é correta, então a natureza e suas operações são independentes no sentido de que a natureza opera conforme o seu modo de ser, não porque algo externo esteja atuando nela. Deus não age na natureza da maneira que um ser humano pode agir em um artefato para modificá-lo. Em vez disto, Deus causa os entes naturais para que sejam de tal modo que operem de acordo com suas naturezas. Os hipopótamos dão a luz porque este é o tipo de coisa que eles são. Por que existem coisas como hipopótamos? Bem, a natureza os produziu de algum modo. De que modo a natureza os produziu e por que a natureza produz as coisas desse modo? É porque Deus fez a totalidade da natureza operar desta maneira e produzir por sua própria agência o que ela produz. Assim, Deus permanece completamente responsável pelo ser e operações de todas as coisas, mesmo que os entes naturais possuam agência real, de acordo com o modo segundo o qual foram criados.

“Deus das lacunas”

            À luz deste esboço do relato tomista da criação e causa natural, alguém pode, talvez, entender a relutância dos tomistas contemporâneos em se apressar em defender os teóricos do DI. Parece que a teoria do DI está baseada na falácia cosmogônica. Muitos que se opõem ao relato darwinista padrão da evolução biológica identificam criação com intervenção divina na natureza. Isto é porque muitos estão preocupados demais com descontinuidades na natureza, tais como as descontinuidades no registro fóssil. Eles veem nelas evidências da ação divina no mundo, com o fundamento de que tais descontinuidades só poderiam ser explicadas pela ação divina direta. Esta insistência de que a criação deva significar que Deus tem periodicamente produzido formas de vida novas e distintas é confusão do fato da criação com a maneira ou modo de desenvolvimento dos entes naturais no universo. Esta é a falácia cosmogônica.

            Entre as tentativas mais sofisticadas dos teóricos do DI de opor-se à explicação darwiniana para a formação dos organismos está o argumento da complexidade irredutível, do bioquímico Michael Behe. Ele argumenta que existem formas de vida específicas e subsistemas bióticos que são irredutivelmente complexos e que não poderiam surgir por meio da seleção natural. Sistemas e formas irredutivelmente complexas revelam design inteligente na natureza e, portanto, indicam a realidade de um projetista inteligente do universo.

Os teóricos do DI ficam, amiúde, perplexos – até um pouco desconsertados – de os tomistas não reconhecerem o peso do argumento de Behe. Afinal de contas, os tomistas são bastante abertos para a noção de que a criação provê evidência para a existência do Criador – os argumentos cosmológicos para a existência de Deus baseados na ordem e operação da natureza têm, há muito tempo, sido domínio especial dos tomistas.

            Por que, então, os tomistas não estão entre os mais ardentes defensores de Behe? Primeiramente, os tomistas concordariam com muitos biólogos que têm apontado que as alegações de complexidade irredutível de Behe falham em distinguir entre a ausência de uma explicação natural da origem de certos sistemas complexos e o juízo de que tal explicação é, em princípio, impossível. Os tomistas, contudo, iriam ainda mais longe que a maioria dos biólogos ao identificar a primeira alegação como relacionada ao conhecimento humano e a segunda como uma afirmação ontológica concernente ao que existe.

Agora, um tomista pode concordar com a alegação de Behe sobre o conhecimento, no sentido que nenhuma tentativa atual ou previsível de explicação para certas complexidades biológicas seja satisfatória. Contudo, um tomista rejeitará a afirmação ontológica de Behe de que tal explicação não possa sequer ser dada em termos das operações da natureza. Esta alegação ontológica depende de uma visão “Deus das lacunas” da agência divina. Esta é a visão de que a natureza, como Deus a criou originalmente, contêm lacunas ou omissões que requerem que Deus as preencha ou repare posteriormente. Dado o entendimento tomista da agência divina, tal visão “Deus das lacunas” é claramente inconsistente com uma concepção apropriada da natureza da criação e, portanto, é uma falácia cosmogônica.

Sem ordem, sem ciência  

Começando com os insights de Tomás de Aquino, os tomistas podem mostrar que a ordem e design evidentes na natureza são, precisamente, aquilo que possibilita a ciência natural. Se a natureza não fosse ordenada, então não existiria uma razão para que as coisas naturais fossem do modo que as observamos. Descobrir tais razões ou causas é propósito da ciência natural. Sem ordem e design na natureza, então, não poderia existir ciência natural. Assim, os seguidores de Darwin que argumentam que a teoria evolutiva remove toda necessidade de postular um projeto na natureza são inconsistentes. Presumivelmente, eles o afirmam com base na ciência natural a qual, se sua alegação for verdadeira, é impossível.

            Ademais, como Aquino argumentou na Summa Theologiae, muitos séculos atrás, a presença de acaso e contingência na natureza mostra que a natureza requer um Criador divino para existir (I:2:3). Novamente, os darwinistas, os quais atribuem tanto peso ao papel do acaso na natureza, são inconsistentes ao negar a criação da natureza. Assim, o tomismo provê uma resposta convincente ao desafio secular de uma teoria evolutiva proposta como alternativa à doutrina da criação. Espécies observadas de plantas e animais podem ou não ser descendentes de ancestrais comuns primordiais. Se eles são, então isto só é porque Deus os criou para ser assim, e sua ancestralidade evolutiva comum é parte de seu projeto divino.

            Os insights de Aquino também proveem uma resposta ao recente desafio à evolução darwiniana por parte da teoria do DI. A criação de Deus do mundo a partir do nada não é o mesmo que uma causa natural. Diferentemente das causas operando na natureza, o ato de Deus na criação é uma realidade completamente não temporal e não progressiva. Deus não intervém na natureza, nem ajusta ou “conserta” as coisas naturais. Deus é a divina realidade sem a qual nenhuma outra realidade poderia existir. Assim, a evidência da dependência última da natureza de Deus como Criador não pode ser a ausência de uma explicação causal natural para alguma estrutura natural em particular. Nossa ciência atual pode ou não ser capaz de explicar qualquer dada característica de organismos vivos, ainda que exista alguma causa explicativa na natureza. O mais complexo dos organismos tem uma explicação natural, mesmo que nós não a conheçamos agora ou talvez nunca venhamos a conhecer.

A causa última de todas as coisas

Contudo, a evidência para a criação de Deus do universo natural é o fato conhecido – um fato que conhecemos com base em nossas pesquisas científicas – de que as coisas naturais são inteligíveis. Se elas são inteligíveis, elas assim o são como produtos da natureza – isto é, elas são inteligíveis em termos de suas causas naturais. Se isto é verdade para a totalidade das coisas naturais, então deve existir alguma causa última para o ser de todas e quaisquer coisas naturais.

            Esta fonte última do ser e inteligibilidade da natureza não pode ser, contudo, outra coisa natural. Ela deve ser algo de fora da natureza que tenha o poder de produzir a totalidade da natureza e não requeira ela mesma uma causa. Ambas a existência e ordem inteligível do universo natural, portanto, mostram que ele existe devido a uma causa última: Deus o Criador.

            Mas mostrar que a contingência e dependência da natureza requerem Deus como causa última desta não é argumentar pela existência de outra causa natural dentro da natureza. Em contraste, articular os detalhes de como a natureza que Deus criou opera é a tarefa das ciências naturais. Assim, o tomismo provê um corretivo para os teóricos do DI que alegam que a ausência de certos tipos de explicação na ciência natural mostra a necessidade de intervenção divina na natureza como um substituto para a causa natural. De acordo com o tomismo, Deus é, de fato, o autor da natureza, mas como sua causa última transcendente. Não como uma causa natural ao lado de outras causas naturais.

O poder corretivo de Tomás de Aquino

            Ambos, o darwinismo, com seu desafio secular à unidade de fé e razão, bem como a tentativa dos teóricos do DI de refutar a teoria evolutiva justificam a escolha, por parte do Papa Leão, de Aquino como o modelo para intelectuais católicos (ver abaixo “A fé católica e a ciência moderna”). O tomismo tem algo útil e corretivo para falar a ambos os lados do debate. Ao mesmo tempo, o tomismo não substitui as ciências naturais, ou talvez, expressando melhor, uma síntese intelectual tomista inclui precisamente o tipo de pesquisa encontrada nas ciências naturais modernas, as quais têm produzido tanto conhecimento acerca da natureza. Na visão tomista, os ensinamentos da fé são totalmente compatíveis com o que aprendemos da natureza através da pesquisa científica, desde que entendamos os ensinamentos divinos corretamente e façamos nossas pesquisas consistente e rigorosamente. A verdade ou falsidade da afirmação de que a diversidade das espécies vivas é devida a algum tipo de processo evolutivo é uma questão a ser estabelecida através de pesquisa biológica. Qualquer que seja o resultado desta pesquisa, ele nunca poderá substituir a necessidade de explicar a existência do mundo natural em termos de uma criação ex nihilo e de acordo com o projeto divino.

            Claramente, as afirmações seculares associadas com o darwinismo moderno requerem o tipo de corretivo proporcionado pelo tomismo. Isto significa, então, que os católicos deveriam se associar aos defensores do DI? Na medida em que a teoria do design inteligente representa uma visão de “Deus das lacunas”, ela é inconsistente com a tradição intelectual católica. Graças aos insights de Tomás de Aquino e seus muitos seguidores através do tempo, os católicos tem disponíveis para si um entendimento da criação mais claro e mais consistente. Se os católicos se valerem desta tradição tomista para si mesmos, eles não terão necessidade de lançar mão de argumentos “Deus das lacunas” para defender os ensinamentos da fé. Eles também terão uma compreensão mais completa e harmoniosa da relação da fé católica com a razão científica.

SUPLEMENTOS

O que é “design inteligente”?

            O movimento do design inteligente ganhou adeptos através de todo o mundo cristão, especialmente entre os protestantes evangélicos. O que é distintivo acerca dele é que o mesmo não rejeita a teoria evolutiva simplesmente em bases religiosas, mas ensaia uma crítica científica. Os teóricos do DI sustentam que a evidência empírica mostra que existem formas biológicas na natureza que não podem ser explicadas em termos de qualquer processo evolutivo. Em vez disto, eles argumentam que tais formas só podem ser explicadas postulando um projetista divino que faz com que a forma exista. Para muitos cristãos, a teoria do design inteligente parece ser um potente desafio à cosmovisão materialista e secular que domina a ciência moderna.

Leitura adicional

            Existe um crescente corpo de literatura sobre a teoria do design inteligente. Consulte as bibliografias disponíveis no site do Discovery Institute (www.discovery.org) para obter uma lista de títulos.

            Para respostas tomistas ao design inteligente:
  • Aquinas on Creation, tr. Steven E. Baldner e William E. Carroll (Pontifical Institute of Medieval Studies, 1997)
  • William E. Carroll, "Creation, Evolution, and Thomas Aquinas," Revue des Questions Scientifiques 171 (2000): 319-47
  • Marie I. George, "On Attempts to Salvage Paley’s Argument from Design," in Science, Philosophy, and Theology, ed. John O’Callaghan (St. Augustine’s Press, 2008)

  Fé católica e ciência moderna

            Em 1879, a Igreja Católica enfrentava uma crise intelectual. Por séculos, o ensino superior e a vida intelectual católicos estavam centralizados nas grandes universidades europeias. Durante a Revolução Francesa, contudo, muitas destas universidades foram fechadas. Nas décadas que se seguiram, novas universidades foram estabelecidas, a maior parte das quais diretamente sob patrocínio estatal. Estas novas instituições de aprendizagem eram, geralmente, seculares em sua orientação e apresentavam um sério desafio à antiga ordem intelectual e moral. Um aspecto especialmente importante deste desafio era a ideia de que o grande avanço científico da época se tornara possível precisamente porque a atividade intelectual teria sido dissociada da Igreja. Para muitos nas novas universidades, ciência e progresso humano pareciam estar em guerra com a mais antiga visão cristã da realidade.

            Entre as novas visões científicas da época que, pensava-se, desafiava seriamente o cristianismo, estava a teoria de Charles Darwin de descendência evolutiva das espécies por meio da seleção natural. Sua concepção de como as forças elementares da natureza geraram os complexos conjuntos orgânicos que observamos no mundo das coisas vivas parecia a muitos estar em oposição ao ensino cristão de que Deus criara o universo de acordo com seu desígnio divino. Darwin parecia ter descoberto o mecanismo – a seleção natural – pelo qual as pressões ambientais permitem certas formas orgânicas, as quais surgem por acaso, sobreviver melhor que seus competidores e proliferarem. O que parecia ser projetado e tornado necessário por Deus é, realmente, o resultado, de ocorrências aleatórias associadas a oportunidades ambientais. Enquanto outrora a doutrina tradicional da criação por um Deus benevolente parecia razoável, agora tal visão afigurava-se como não científica.

            A teoria da evolução de Darwin sugeria que o mais alto bem da coisa viva não é a perfeição do indivíduo dentro de sua espécie de acordo com o desígnio divino, mas a simples sobrevivência. Como o mínimo denominador comum da natureza, a sobrevivência veio a representar o bem para o qual a evolução progredia – um bem que era, meramente, material e sem qualquer origem divina. Mais tarde, alguns defensores da evolução vieram a considerar que mesmo este bem material era similar demais ao design e sustentaram que a evolução não teria objetivo algum – que ela é simplesmente mudança constante e sem direção. O ateu Richard Dawkins, por exemplo, argumenta que a moderna biologia evolutiva prova que o universo “tem precisamente as propriedades que deveríamos esperar se não existir, no fundo, nenhum design, nenhum propósito, nenhum mal e nenhum bem; nada além de cega e impiedosa indiferença” (River Out of Eden, ch. 4 [O Rio que Saia do Éden, cap. 4]). Se a secularização geral da aprendizagem fez a separação entre fé e ciência parecer possível, a teoria da evolução biológica de Darwin fê-la parecer necessária.

            Em face deste desafio, o Papa Leão XIII percebeu que algo precisava ser feito para restaurar a vida intelectual católica e seu testemunho das verdades da fé. Assim, em 1879, ele publicou a encíclica Aeterni Patris, na qual reafirmava um princípio central da tradição intelectual católica: a harmonia entre fé e razão. Os ensinamentos da fé são revelação da verdade de Deus: a ciência, o produto da razão humana, é a busca pela verdade. A verdadeira fé, portanto, não pode se opor à boa ciência porque a verdade é objeto de ambas. A visão secular que veio dominar a moderna vida intelectual era um erro: a fé não é oposta à razão, e a moderna ciência secular não é substituta da antiga fé ensinada pela Igreja. Fé e razão podem, é claro, parecer opostas. Contudo isto só pode ocorrer se ou não compreendermos corretamente o que Deus nos revela ou se cometermos erros em nossa pesquisa científica. Se, por outro lado, entendermos claramente a revelação divina e formos cuidadosos e rigorosos em nossa ciência, então conheceremos a verdade – não uma verdade religiosa e outra verdade científica, mas a verdade – o modo como a realidade é, de fato.

            Percebendo que a exortação para unificar fé e razão seria melhor apoiada por um exemplo, o Papa Leão providenciou um: o teólogo medieval Santo Tomás de Aquino. Se tomássemos Santo Tomás como nosso modelo e inspiração, nós teríamos um bom fundamento sobre o qual poderíamos reconstruir a vida intelectual católica em face do novo desafio secular. Nos quase 130 anos desde o lançamento da Aeterni Patris, um movimento intelectual católico moderno foi, de fato, estabelecido e, seguindo a liderança do Papa Leão, sua característica proeminente foi um tomismo que busca aplicar os insights perenes de Aquino aos problemas da ciência e cultura modernas.

Artigo de Michael W. Tkacz (professor associado de filosofia na Gonzaga University) postado em 01/11/2008 (original aqui). Tradução: Robson Barbosa da Silva.

[1] Na verdade, os mamíferos são uma classe: mammalia (nota do tradutor).