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terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

O Dilúvio de Gênesis como visto pelos antigos: uma entrevista com John Walton e Tremper Longman III...


 "A entrada dos animais na Arca", de Jacopo Bassano (c. 1570).

Entrevista concedida a Brad Kramer de Biologos pelos estudiosos do Antigo Testamento John Walton e Tremper Longman sobre o livro "Lost World of the Flood" (texto original aqui).

Por milhares de anos, a história de Gênesis sobre Noé, a Arca e o Dilúvio tem cativado leitores. Com o advento da ciência moderna – a qual tem acumulado um enorme corpo de evidência contra um recente dilúvio global – esta história tornou-se um campo de batalha central do debate sobre as origens. O moderno movimento criacionista da terra jovem foi fundado em um extenso livro escrito como defesa científica de um dilúvio global. E em anos recentes, uma “réplica” em tamanho real da Arca de Noé, construída pelo ministério Answers in Genesis, gerou manchetes nacionais e atraiu milhões de visitantes.

Aqueles comprometidos com a autoridade das Escrituras e a validade da corrente principal do consenso científico frequentemente sentem-se presos em uma situação impossível com a história do Dilúvio bíblico. É possível afirmar ambos ao mesmo tempo? Em seu novo livro The Lost World of the Flood: Mythology, Theology, and the Deluge Debate, os eruditos bíblicos John Walton e Tremper Longman respondem a esta pergunta com um sonoro “sim!”. A série de livros “Lost World” de John Walton já tem exercido um enorme impacto sobre como muitos evangélicos pensam acerca do Gênesis e a ciência, e este novo volume é uma adição digna. Os leitores são desafiados a reexaminar radicalmente suas pressuposições sobre o que realmente é a história do Dilúvio. Walton e Longman argumentam persuasivamente que as leituras mais modernas da história do Dilúvio subestimam a antiga perspectiva do texto e, portanto, tiram conclusões erradas sobre os eventos que ele retrata.

Walton e Longman atenciosamente concordaram em compartilhar suas ideias sobre como seu livro contribui para a conversação sobre as origens, e como eles lidam com as mais espinhosas questões levantadas pela história do Dilúvio.

BIOLOGOS: Vocês falam bastante no livro sobre os problemas em aplicar modernos padrões da história ao Gênesis. Quais as maiores diferenças entre as modernas noções de “história” e aquelas do antigo contexto do Oriente Médio, no qual a Bíblia foi escrita? Por que é importante se entender estas diferenças, à medida em que abordamos a história do Dilúvio como leitores modernos?

JOHN WALTON: Em nossas ideias modernas sobre história, valorizamos bastante o empirismo e o testemunho ocular. Eles estão entre as mais importantes vias que buscamos para revelar “o que realmente aconteceu”. Assim, determinamos a natureza da realidade histórica. Nesta visão, não há lugar para Deus assumir um papel nos eventos – isto não seria considerado “história real”. Em contraste, o mundo antigo, incluindo o Antigo Testamento, põe muito mais ênfase naquilo que Deus (ou os deuses) está fazendo. Suas abordagens são menos empíricas; mais teológicas. Eles não estão tão interessados em reconstruir o evento quanto em interpretar teologicamente o significado do evento.

BIOLOGOS: No primeiro capítulo, vocês usam o exemplo de um relatório de tráfego de Chicago para demonstrar que qualquer tipo de comunicação – incluindo a Bíblia mesma – é mais ou menos “clara” dependendo de sua distância do tempo e cultura nos quais aquela comunicação se deu. Contudo, vocês alegam que as principais mensagens da Bíblia são claras para qualquer leitor, a despeito de seu nível de conhecimento acerca do antigo contexto. Mas como todo o seu livro demonstra, a história do Dilúvio é muito facilmente mal compreendida (e isto avaliando superficialmente) por leitores modernos, por ela ser tão cheia de referências de “relatório de tráfico” às antigas cosmologia, literatura e cultura que não mais fazem sentido para um leitor moderno médio. Assim o que exatamente é “claro” acerca da história do Dilúvio, para qualquer leitor em qualquer cultura? Como podemos falar sobre a “clareza” da Bíblia de uma forma que respeite a enorme distância cultural entre nós e o público original?

JOHN WALTON: A clareza que permeia a Bíblia inteira encontra-se em seu testemunho da soberana execução dos planos e propósitos de Deus. Este está trabalhando no mundo e nós testemunhamos este trabalhar na medida em que sua história é compartilhada. Esta história envolve Deus ordenando o mundo para que este funcione como um lar para si mesmo e para as pessoas, com quem ele planeja trabalhar para continuar trazendo ordem ao mundo. Esta história da obra e Deus no mundo e conosco nos ajuda a entender que ele tem planos e propósitos, e que os tornou suficientemente manifestos para podermos saber como participar deles. É a isto que os reformadores protestantes se referiam quando falavam sobre a clareza das Escrituras. Eles não queriam dizer que qualquer leitor pudesse facilmente entender as profundezas e tecnicalidades de qualquer passagem, ou não teriam escrito centenas de volumes de comentários e teologia.

BIOLOGOS: “A Bíblia descreve um dilúvio global, contudo absolutamente nenhuma evidência geológica sustenta um dilúvio global” (49). Vocês admitem no livro que esta conclusão atingirá muitos leitores ou como uma contradição ou como uma refutação da autoridade da Bíblia. Como é possível Gênesis 6-9 – que vocês insistem intentou ser lido como histórico – descrever algo que não ocorreu e mesmo assim ser verdadeiro?

TREMPER LONGMAN: Uma inundação ocorreu, e esse evento tornou-se o veículo para a história bíblica. Gênesis 1-11 como um todo é “história teológica” que reconta eventos reais (a criação do cosmo e humanidade por Deus, rebelião humana, o dilúvio, etc.) mas retrata estes eventos em linguagem figurada afim de fazer importantes e verdadeiras declarações teológicas. No caso do Dilúvio, parece que uma inundação regional particularmente devastadora foi descrita hiperbolicamente (ou seja, utilizando-se de exagero proposital) de forma a fazer importantes observações sobre pecado, julgamento e graça, bem como sobre ordem, desordem e reordenação divina. Gênesis 1-11, que fala acerca do passado remoto, é similar ao livro do Apocalipse, o qual utiliza linguagem figurada (e. g., Jesus aparecendo em um cavalo branco com uma espada saindo de sua boca em Ap. 19) para descrever eventos reais no futuro distante.

BIOLOGOS: Na visão de vocês, “o relato bíblico descreve o dilúvio retoricamente como um dilúvio global” (92). Vocês pensam que os escritores bíblicos sabiam que o dilúvio que eles estavam descrevendo não fora um evento global? A resposta para esta questão é importante – especialmente para aqueles que creem na autoridade da Bíblia?

JOHN WALTON: A autoridade da Bíblia é sempre relativa à forma literária na qual a mensagem é comunicada. Quando lemos a Bíblia no modo que o autor tencionou que sua audiência a lesse, nós podemos dizer que a lemos “literalmente”. Se ele utilizou hipérbole (como sugerimos que fez), ele esperou que sua audiência reconhecesse isto como hipérbole (que, cremos, eles teriam feito). Isto significa que a leitura literal requer de nós ler isto como hipérbole, e qualquer outra leitura não respeitaria a autoridade da Escritura. Hipérbole é um dispositivo literário apropriado para a narrativa do dilúvio porque o Dilúvio teve um impacto e significado de uma ruptura da ordem no cosmo. O exílio foi outro evento que foi percebido como uma catástrofe cósmica (porque o templo, o lugar a partir do qual Deus mantivera a ordem, fora destruído).

BIOLOGOS: “A realidade do evento não se encontra em sua reconstrução, mas no lugar literário e teológico que o autor lhe dá” (177). Esta perspectiva sobre a autoridade bíblica atingirá alguns como sendo um declive escorregadio. Se vocês estiverem certos sobre o Dilúvio, podemos, então, confiar que qualquer coisa na Bíblia realmente aconteceu? Como sabemos quais passagens estão descrevendo acuradamente eventos reais e quais não estão?

TREMPER LONGMAN: A história do dilúvio está descrevendo um evento real, mas usando hipérbole para retratar esse evento real de forma a transmitir a mensagem teológica do escritor. Isto não é exclusivo à história do dilúvio. Podemos pensar na descrição da conquista em Josué 1-12, particularmente à luz da declaração sumária no capítulo 12. A impressão que se tem é que Josué e os israelitas conquistaram a totalidade de Canaã. Mas se simplesmente virarmos a página para o capítulo 13 e começarmos a ler ou formos a Juízes 1, sabemos que haviam vastas extensões de terra bem como muitos cananeus ainda vivendo na terra. O relato em Josué 1-12 não estava tentando enganar ninguém, mas pôr toda ênfase nos pontos positivos, de forma a celebrar o início do cumprimento da antiga promessa da terra que fora dada a Abraão. Existe base histórica para o relato da conquista, mas temos que ler a narrativa no contexto cultural no qual ela foi escrita, um contexto no qual a hipérbole era um padrão nos relatórios de batalha. E temos que ler a história do dilúvio da mesma forma.

BIOLOGOS: Se o dilúvio bíblico é um recontar hiperbólico de um evento real de inundação, então a Arca é uma versão hiperbólica de um barco de madeira real? Noé é uma figura histórica real?

JOHN WALTON: O Dilúvio é um relato hiperbólico e a Arca é, do mesmo modo, um relato hiperbólico. Isto não quer dizer que não existiu nenhum dilúvio ou nenhum barco. Uma pessoa não pode ser hiperbólica (penso que não, embora elas possam ser idealizadas, como o é Jó). Se há um dilúvio (de algum tipo) e um barco (de algum tipo), então há motivos para se crer que houve um Noé.

BIOLOGOS: Suspeito fortemente que alguns críticos deste livro alegarão que vocês estão reinterpretando a Bíblia com base em ideias científicas feitas por homens, em vez de julgar a ciência pela Palavra de Deus. Como vocês responderiam a esta crítica?

TREMPER LONGMAN: Eu sugeriria que, algumas vezes, a ciência pode nos ajudar a ler melhor a Bíblia. A clássica Confissão Reformada Belga, em seu Artigo 2, nos diz que Deus nos fala através de dois livros, a Bíblia e a natureza:

Nós O conhecemos por dois meios: Primeiro: pela criação, preservação e governo do Universo, o qual está perante nossos olhos como o mais elegante dos livros, no qual todas as criaturas grandes e pequenas são como as muitas letras que nos levam a ver claramente as coisas invisíveis de Deus, assim como o seu eterno poder e divindade, como nos diz o apóstolo Paulo em Rm 1.20. Todas essas coisas são suficientes para convencer os homens e torná-los indesculpáveis. Segundo: Ele se faz conhecer mais clara e plenamente através da Sua Santa e Divina Palavra, tanto quanto nos é necessário nesta vida, para a Sua glória e nossa salvação.

Assim, quando ambas são interpretadas corretamente, elas nunca entrarão em conflito. Independentemente da ciência, deveríamos reconhecer a descrição figurativa dos eventos passados que Gênesis 1-11 nos fornece (tardes e manhãs anteriores à criação do sol, lua e estrelas; Deus, um ser espiritual, soprando no pó para criar o primeiro humano). Quando se trata do dilúvio, o livro de Deus da natureza é claro: não houve um dilúvio global. Então, isto deveria nos ajudar a ver que a Bíblia está utilizando uma descrição hiperbólica de uma inundação regional para apresentar sua mensagem teológica.

BIOLOGOS: “A humanidade bem que merece sofrer extinção após sua reiterada e profunda rebelião contra aquele que a criou” (106). Esta linha do livro de vocês, explicando a razão teológica para a total destruição da humanidade no Dilúvio, encoraja algumas questões familiares dos céticos. Os bebês que morreram no Dilúvio também merecem morrer? E quanto aos incontáveis animais que não tinham nada a ver com a maldade humana? Por que Deus simplesmente não destruiu os piores transgressores e deixou os inocentes incólumes? Parece com o equivalente teológico de se lidar com o problema de um inseto com um potente explosivo. Qual a abordagem de vocês para questões como estas? O Deus do Dilúvio pode ser reconciliado com o Deus de Amor supremamente revelado em Cristo?

TREMPER LONGMAN: Esta questão é profundamente perturbadora para aqueles de nós vivendo hoje em dia, particularmente no relativamente calmo mundo ocidental. Eu não posso aborda-la plenamente aqui, mas faço em meu próximo livro Wrestling with the Old Testament: Confronting the Challenge of Evolution, Divine Violence, Historicity, and Sexuality (Baker) que deve sair no final de 2019. Deixe-me brevemente sugerir que esta questão não seria algo que perturbaria os antigos leitores, os quais viviam em uma cultura assolada pela violência. E isto também é verdade para as pessoas de hoje que tenham testemunhado ou experimentado a perversidade em suas vidas. Tome o teólogo de Yale Miroslav Volf, que cresceu na antiga Yugoslavia e testemunhou extrema brutalidade arrasando sua comunidade. Esta experiência levou-o a reconsiderar a natureza do amor de Deus, como ele relata em seu excelente livro Free of Charge: Giving and Forgiving in a Culture Stripped of Grace: “Embora eu costumasse me queixar da indecência da ideia de ira divina, cheguei à conclusão de que teria que rebelar-me contra um Deus que não se irasse à vista do mal no mundo. Deus não é irado a despeito de ser amor. Deus é irado porque Deus é amor” (138-139). A descrição daqueles que morreram no dilúvio é que sua maldade era grande e “que toda inclinação de seus pensamentos [...] era má, apenas, o tempo todo” (Gn 6.5). Embora esta afirmação seja outro exemplo da descrição hiperbólica do dilúvio (a qual também inclui a extensão das águas e a devastação), ela comunica a profundidade e amplitude do pecado humano que levou ao juízo de Deus. Verdade seja dita, a Bíblia não conhece nenhuma categoria de pessoas “inocentes” que morreram no dilúvio. Mesmo bebês têm uma propensão para o egoísmo que está em desarmonia com a intenção criativa de Deus para suas criaturas humanas – e nenhuma criança (que não seja Cristo) cresceu para ser sem pecado.

BIOLOGOS: As referências no Novo Testamento ao Dilúvio não provam que ele seja um evento real? Os escritores do NT sabiam que o “ponto de referência” histórico do Dilúvio fora uma catástrofe regional em vez de um evento global? Como os autores do Novo Testamento podem ser inspirados se eles estão se referindo a eventos que não ocorreram?

JOHN WALTON: É claro que o NT apresenta o Dilúvio como um evento real, e nós não estamos negando que ele foi um evento real. A pergunta que frequentemente queremos fazer diz respeito ao escopo do evento. Ambos o Antigo e o Novo Testamento estão interessados no significado cósmico e teológico do evento. Não é incomum que o AT e o NT ofereçam cada um sua própria interpretação dos eventos – e isto é perfeitamente adequado desde que ambos são inspirados. Um evento pode ser interpretado de diferentes perspectivas. Assim, por exemplo, Reis e Crônicas interpretam diferentemente os acontecimentos da monarquia, mas nós consideramos ambas as interpretações verdadeiras. Seja qual for o escopo do dilúvio, ele foi um evento real com significado cósmico e teológico que é desenvolvido nos contextos do AT e do NT.

Tradução: Robson Barbosa da Silva.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Dilúvio no Mar Negro...


Tradução do texto "Most Curious of Seas" (original em London Review of Books), de Richard Fortey. O autor é, atualmente, pesquisador associado no Museu de História Natural de Londres.
  • Noah’s Flood: The New Scientific Discoveries about the Event that Changed History, por William Ryan e Walter Pitman
    Simon and Schuster, 319 pp, £17.99, Fevereiro de 1999, ISBN 0 684 81052 2
Quando a água começou a subir, todos os peixes flutuaram para a superfície do lago, inchados e mortos, ou morrendo convulsivamente. As pessoas do lago observaram seu modo de vida desaparecer em poucos dias – não havia como parar a inundação. Um dos anciãos da tribo percebeu que a água adquirira um sabor salgado. Logo a água estava lambendo as precárias fundações das cabanas de madeira: não havia nada a fazer senão fugir antes do avanço com o que pudesse ser carregado. Refugiados aterrorizados de tribos ao leste informaram sobre um grande estrondo. Aqueles que demoraram se afogaram. Em questão de semanas, o nível da água subiu cento e cinquenta metros.

Aqueles que tomaram parte na desesperada diáspora fugiram para o oeste ao longo do vale do Danúbio, ou para o sul e para o leste, aos pés do Cáucaso. Outros cruzaram o terreno selvagem para o leste, eventualmente encontrando refúgio em volta de um lago que antes ficava entre Tien Shan e o planalto tibetano. Algumas tribos, mais afortunadas ou mais ousadas, penetraram nas Montanhas Taurus e escaparam para as planícies além, naquilo que hoje é conhecido como Mesopotâmia. Onde quer que os sobreviventes se estabelecessem, a terrível inundação tornou-se uma história básica para advertir e aterrorizar a próxima geração, um evento tão profundamente traumático que foi recontado por mais de mil anos, transmitido na tradição oral antes de ser inscrito em argila. Ainda hoje, os guslars cantam-no. Isto, Ryan e Pitman nos dizem, foi o verdadeiro Dilúvio, o evento histórico que conhecemos como o Dilúvio de Noé.

O Dilúvio foi o resultado de uma inundação de um enorme lago de água doce que se tornou, em questão de semanas, o Mar Negro. Ele é negro porque a poucos metros abaixo da superfície é destituído de vida – falta oxigênio – e o fundo do mar é coberto por lama fétida e escura onde nada além de bactérias pode se desenvolver. Os peixes florescem apenas na camada superior da água, suspensos acima das profundezas onde sufocariam em segundos. A transformação de um lago para o mais curioso dos mares ocorreu quando o Dardanelos se rompeu há mais de sete mil anos. O Mediterrâneo correu através de um desfiladeiro para as planícies além no momento em que uma barreira de terra cedeu. Isto, por sua vez, foi uma consequência da elevação do nível do mar no fim da última época glacial. Foi uma catástrofe tão completa quanto a ruptura de uma represa gigante, com uma força 400 vezes maior que a gerada pelas Cataratas do Niágara. A torrente esculpiu um enorme corte no extremo leste do assoalho do Mar Negro. Ao contrário de alguns dos eventos que moldaram a história da Terra – impactos de meteoritos ou colossais erupções vulcânicas – este não foi globalmente traumático. Comparativamente poucas espécies pereceram e outras novas invadiram, de sua fortaleza mediterrânea, o recém-salgado mar.

A inundação do Mar Negro é um fato geológico. Ryan e Pitman descrevem brilhantemente as evidências que os levaram a identificar a transição catastrófica de lago para mar. Ainda há um legado. Na superfície, as correntes fluem, ao longo do Dardanelos, do Mar Negro para o Mediterrâneo, mas nas profundezas há uma lembrança sombria do Dilúvio – pois uma contracorrente ainda flui na direção oposta. Os marinheiros sabiam disso nos velhos tempos: podiam navegar contra a corrente de superfície se afundassem uma rede pesada para sondar essas profundidades contrárias – a força das profundezas puxava seus barcos contra a correnteza.

Durante uma intensa fase de pesquisa no início dos anos noventa, as embarcações oceanográficas iam e voltavam ao Mar Negro fazendo sondagens e recolhendo núcleos do fundo do mar, onde os sedimentos haviam acumulado uma história da inundação. Os navios de pesquisa – com os autores a bordo – descobriram fósseis de animais que uma vez se deleitaram em água doce: as criaturas que anteriormente alimentavam os moradores da costa. Os núcleos de sedimentos mostraram que estes moluscos foram manchados por lama negra. Uma vez inundada de salinidade, a água foi drenada de oxigênio e permaneceu assim desde então. Os exploradores descobriram as costas afogadas e mapearam as bordas do antigo lago. Quando o mar inundou, as conchas de água doce foram substituídas por amêijoas e mexilhões. Se os homens da tribo esperassem, eles poderiam ter comido moules marinières[1]. As conchas fósseis também forneceram os materiais que tornaram possível a datação por carbono da catástrofe. Algo como 7500 anos se passaram desde que o mar rugiu através do Dardanelos e separou a Ásia da Europa. As pessoas que viveram em paz por séculos fugiram, mas levaram consigo uma cultura desenvolvida em tempos de abundância.

Em uma dúzia de sítios na Europa Central e no Oriente Médio há um súbito aparecimento de novos artefatos em pilhas de rejeitos e tels[2]. Os fragmentos quebrados de culturas perdidas – cacos e ornamentos descartados – falam de uma época de imigração. Por que os fazendeiros da “cerâmica de faixas lineares” repentinamente se espalharam pela Europa a partir do rio Dniester, mais ou menos na mesma época em que surgiram novas culturas na estratigrafia arqueológica da Bulgária e da Dalmácia?

Lendas de um grande dilúvio permearam muitas tradições. Em 1876, George Smith publicou suas traduções da escrita cuneiforme preservada em tabuletas de barro cozido da Mesopotâmia – que registraram o que hoje chamamos de Épico de Gilgamesh. Esses fragmentos da grande biblioteca de Nínive falavam, numa língua conhecida como acadiano, de uma época antiga, mesmo quando os primeiros escribas compunham seus registros. Gilgamesh relata uma inundação. Smith estava convencido de que esta era um acontecimento real, sem dúvida o mesmo descrito em Gênesis. Uma tragédia de tamanha magnitude e terror que foi entrelaçada no tecido cultural de todos aqueles que outrora viveram ao longo do Crescente Fértil. Ainda parece surpreendente que as tabuletas de barro reconstruídas tão meticulosamente a partir do terceiro milênio a. C. confirmem uma história que muitas crianças do século XX aprenderam primeiramente no último remanescente de nossa própria tradição oral – suas classes da Escola Dominical.

A suposição natural feita pelos arqueólogos era que o Dilúvio era uma inundação excepcional do Tigre e do Eufrates rios que são imprevisíveis até hoje – que devastou a paisagem da Mesopotâmia. A sugestão extraordinária de Ryan e Pitman é que o dilúvio foi a mais antiga inundação do lago do Mar Negro, carregado como uma memória folclórica junto com a diáspora, cantada e recantada por bardos e guslars por mais de mil anos de cultura pré-literária, antes de ser colocado em argila pelo primeiro daqueles para quem a memória exigia apoio escrito. É uma ideia convincente, até porque é muito simples. Explica o aparecimento de novas culturas após um hiato arqueológico; explica a distribuição de artefatos e a disseminação cultural da lenda do dilúvio; explica a falta de evidência de um evento suficientemente catastrófico nos sedimentos assentados na Mesopotâmia.

A geologia teve um relacionamento longo e intranquilo com o Dilúvio. Evidências geológicas foram usadas primeiramente para demonstrar a veracidade bíblica. O deão Buckland reconheceu ossos fósseis preservados em cavernas em locais tão pouco bíblicos quanto Yorkshire, como prova tangível da catástrofe de Noé; Ele contou os detalhes em um livro notável, Reliquiae Diluvianae ("Relics of the Flood", 1823). A geologia moderna logo desmentiu tais noções – os mesmos esqueletos de cavernas foram reconhecidos como o legado das faunas da Era do Gelo. O dilúvio então foi localizado nas terras da Bíblia. Não muito tempo depois da surpreendente descoberta da Epopéia de Gilgamesh, o grande geólogo da virada do século, Eduard Suess, tentou vincular o dilúvio a uma causa geológica. Ele usou uma linha similar de raciocínio à de Ryan e Pitman para manipular um tipo diferente de catástrofe geológica, e ele fez uma manobra intelectual similarmente ousada e, de fato, pioneira. Talvez Ryan e Pitman devessem ter dado a Suess um aceno como padrinho conceitual – seu nome nem é mencionado em Noah’s Flood. Suess concluiu que o Dilúvio não tinha nada a ver com uma cheia do Tigre e Eufrates. Em vez disso, ele invocou uma massiva incursão do mar sobre a Mesopotâmia: talvez o tipo de tsunami associado a um grande terremoto submarino.

Suess percebeu que a Arca supostamente parou no Monte Ararat – ao norte do Crescente Fértil – na direção oposta ao que poder-se-ia esperar se o Dilúvio tivesse se originado de rios transbordando de água na planície, e drenando em direção ao mar. Quando li pela primeira vez Gilgamesh, lembrei-me do relato de Plínio sobre a erupção do Vesúvio em 79 d. C. e me perguntei se a descrição dos céus negros e escuros poderia ser consistente com uma erupção vulcânica. Stephanie Dalley, a decana dos acadêmicos acádios, lembrou-me, no entanto, que não havia evidência convincente no registro arqueológico da Mesopotâmia de um evento em tão larga escala e catastrófico (a erupção explosiva da ilha de Santorini, no Mediterrâneo, era tardia demais para ser relevante). Certamente, escavações locais registraram inundações na Mesopotâmia, sem dúvida angustiantes para aqueles que viviam às margens do Eufrates, mas insuficientes para fornecer o motor para um milênio de mitos. Ryan e Pitman usam isso como mais uma prova de que a memória da catástrofe tinha até então um período ainda mais remoto. Em suma, a inundação do Mar Negro remove o Dilúvio Bíblico de sua pátria religiosa.

Os geólogos parecem destinados a viver brigando com aqueles que querem interpretar a história da Bíblia literalmente. Ian Plimer, um geólogo da Universidade de Melbourne e especialista em geologia turca, recentemente colocou seus meios de subsistência em risco ao desafiar o que ele vê como um absurdo criacionista. Um grupo de fundamentalistas locais, liderados por um tal Allen Roberts, afirmou ter encontrado evidências “científicas” dos restos da Arca de Noé. Plimer alegou que essa suposta evidência é uma estrutura geológica natural, um sinclíneo localizado a cerca de vinte milhas do Monte Ararat na Turquia – não tão longe quanto a distância por ar partindo-se do Mar Negro[3]. Um sinclíneo é uma estrutura produzida por forças tectônicas suaves, sendo uma dobra em estratos com a forma de uma mão em concha. Se um deles se desenvolveu em leitos de rocha com a espessura certa, ele pode – concebivelmente – assemelhar-se a uma embarcação rudemente entabuada. Roberts foi presumivelmente persuadido por tal ocorrência perto de onde a Arca supostamente estava encalhada. Dois anos atrás, Plimer perdeu um caso no qual ele tentou processá-lo sob a Lei de Comércio Justo da Austrália, a qual exige que os comerciantes não façam alegações enganosas. Ele perdeu porque o juiz Sackville concluiu que a questão não era relativa a “descrição comercial”, mas liberdade de expressão.

A identidade do Dilúvio continua sem comprovação. Estou convencido pela evidência (que Ryan e Pitman organizaram com clareza exemplar) da catástrofe do Mar Negro. Um enorme lago de água doce morreu há mais de sete mil anos e um mar com profundezas envenenadas foi criado em seu lugar. Mas um salto de fé ainda é necessário para vincular este evento com o dilúvio bíblico, para permitir a perpetuação mítica do evento através de tantas gerações e através de uma ampla dispersão geográfica. Há detalhes, como a própria Arca e a identificação do Monte Ararat, ou em algum lugar próximo, como seu ponto final, que parecem muito específicos e inadequados para a lenda do Mar Negro. Mas a explicação mais conservadora – uma inundação na própria Mesopotâmia – também tem suas deficiências. Um evento histórico de tal suposta magnitude deveria ter deixado mais evidência direta do que a existente. Mas certamente a interpretação mais tola é a leitura bíblica que afirma que as rochas são de madeira, e levanta evidências de restos duvidosos para persuadir os devotos a traírem sua racionalidade.

Tradução: Robson Barbosa da Silva


[1] Em francês, “mexilhões marinhos” (nota do tradutor). 
[2] Montes de terra formados com a erosão de antigos locais de ocupação humana (nota do tradutor).
[3] Inglês: not far as the raven flies from the Black Sea (nota do tradutor).

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Deus como Criador: uma proposta de relacionamento entre ciência e teologia...

Caros amigos e seguidores do blog, segue um artigo meu publicado na Revista Eletrônica Espaço Teológico (RevEleTeo; ISSN 2177-952x), da Pontifícia Universidade Católica (PUC) sobre as interações entre teologia e ciências no contexto do debate em torno de temas como evolução e criação. Abaixo está o resumo do trabalho e o link para a revista...


"O presente texto trata de algumas das vias utilizadas para se argumentar em favor da existência de Deus. Parece, contudo, que um recurso ao ordenamento do mundo com o fim de evidenciar a verdade do teísmo enfrenta uma série de limitações. A hipótese central da mundividência teísta, contudo, é coerente com o pressuposto da própria ciência, sendo um universo inteligível aquilo que se esperaria de uma realidade criada por alguém inteligente com propósito. A abordagem de se concentrar na cognoscibilidade do mundo, embora não eliminando a dúvida acerca da existência de Deus, parece ser uma proposta mais promissora, no contexto do diálogo entre ciência e teologia, que a proposta que foca em lacunas no conhecimento humano, com fins de encaixar Deus nas mesmas, pois que a primeira, ao contrário desta, não pode sofrer erosão pelo progresso do conhecimento científico".