Páginas

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Dilúvio no Mar Negro...


Tradução do texto "Most Curious of Seas" (original em London Review of Books), de Richard Fortey. O autor é, atualmente, pesquisador associado no Museu de História Natural de Londres.
  • Noah’s Flood: The New Scientific Discoveries about the Event that Changed History, por William Ryan e Walter Pitman
    Simon and Schuster, 319 pp, £17.99, Fevereiro de 1999, ISBN 0 684 81052 2
Quando a água começou a subir, todos os peixes flutuaram para a superfície do lago, inchados e mortos, ou morrendo convulsivamente. As pessoas do lago observaram seu modo de vida desaparecer em poucos dias – não havia como parar a inundação. Um dos anciãos da tribo percebeu que a água adquirira um sabor salgado. Logo a água estava lambendo as precárias fundações das cabanas de madeira: não havia nada a fazer senão fugir antes do avanço com o que pudesse ser carregado. Refugiados aterrorizados de tribos ao leste informaram sobre um grande estrondo. Aqueles que demoraram se afogaram. Em questão de semanas, o nível da água subiu cento e cinquenta metros.

Aqueles que tomaram parte na desesperada diáspora fugiram para o oeste ao longo do vale do Danúbio, ou para o sul e para o leste, aos pés do Cáucaso. Outros cruzaram o terreno selvagem para o leste, eventualmente encontrando refúgio em volta de um lago que antes ficava entre Tien Shan e o planalto tibetano. Algumas tribos, mais afortunadas ou mais ousadas, penetraram nas Montanhas Taurus e escaparam para as planícies além, naquilo que hoje é conhecido como Mesopotâmia. Onde quer que os sobreviventes se estabelecessem, a terrível inundação tornou-se uma história básica para advertir e aterrorizar a próxima geração, um evento tão profundamente traumático que foi recontado por mais de mil anos, transmitido na tradição oral antes de ser inscrito em argila. Ainda hoje, os guslars cantam-no. Isto, Ryan e Pitman nos dizem, foi o verdadeiro Dilúvio, o evento histórico que conhecemos como o Dilúvio de Noé.

O Dilúvio foi o resultado de uma inundação de um enorme lago de água doce que se tornou, em questão de semanas, o Mar Negro. Ele é negro porque a poucos metros abaixo da superfície é destituído de vida – falta oxigênio – e o fundo do mar é coberto por lama fétida e escura onde nada além de bactérias pode se desenvolver. Os peixes florescem apenas na camada superior da água, suspensos acima das profundezas onde sufocariam em segundos. A transformação de um lago para o mais curioso dos mares ocorreu quando o Dardanelos se rompeu há mais de sete mil anos. O Mediterrâneo correu através de um desfiladeiro para as planícies além no momento em que uma barreira de terra cedeu. Isto, por sua vez, foi uma consequência da elevação do nível do mar no fim da última época glacial. Foi uma catástrofe tão completa quanto a ruptura de uma represa gigante, com uma força 400 vezes maior que a gerada pelas Cataratas do Niágara. A torrente esculpiu um enorme corte no extremo leste do assoalho do Mar Negro. Ao contrário de alguns dos eventos que moldaram a história da Terra – impactos de meteoritos ou colossais erupções vulcânicas – este não foi globalmente traumático. Comparativamente poucas espécies pereceram e outras novas invadiram, de sua fortaleza mediterrânea, o recém-salgado mar.

A inundação do Mar Negro é um fato geológico. Ryan e Pitman descrevem brilhantemente as evidências que os levaram a identificar a transição catastrófica de lago para mar. Ainda há um legado. Na superfície, as correntes fluem, ao longo do Dardanelos, do Mar Negro para o Mediterrâneo, mas nas profundezas há uma lembrança sombria do Dilúvio – pois uma contracorrente ainda flui na direção oposta. Os marinheiros sabiam disso nos velhos tempos: podiam navegar contra a corrente de superfície se afundassem uma rede pesada para sondar essas profundidades contrárias – a força das profundezas puxava seus barcos contra a correnteza.

Durante uma intensa fase de pesquisa no início dos anos noventa, as embarcações oceanográficas iam e voltavam ao Mar Negro fazendo sondagens e recolhendo núcleos do fundo do mar, onde os sedimentos haviam acumulado uma história da inundação. Os navios de pesquisa – com os autores a bordo – descobriram fósseis de animais que uma vez se deleitaram em água doce: as criaturas que anteriormente alimentavam os moradores da costa. Os núcleos de sedimentos mostraram que estes moluscos foram manchados por lama negra. Uma vez inundada de salinidade, a água foi drenada de oxigênio e permaneceu assim desde então. Os exploradores descobriram as costas afogadas e mapearam as bordas do antigo lago. Quando o mar inundou, as conchas de água doce foram substituídas por amêijoas e mexilhões. Se os homens da tribo esperassem, eles poderiam ter comido moules marinières[1]. As conchas fósseis também forneceram os materiais que tornaram possível a datação por carbono da catástrofe. Algo como 7500 anos se passaram desde que o mar rugiu através do Dardanelos e separou a Ásia da Europa. As pessoas que viveram em paz por séculos fugiram, mas levaram consigo uma cultura desenvolvida em tempos de abundância.

Em uma dúzia de sítios na Europa Central e no Oriente Médio há um súbito aparecimento de novos artefatos em pilhas de rejeitos e tels[2]. Os fragmentos quebrados de culturas perdidas – cacos e ornamentos descartados – falam de uma época de imigração. Por que os fazendeiros da “cerâmica de faixas lineares” repentinamente se espalharam pela Europa a partir do rio Dniester, mais ou menos na mesma época em que surgiram novas culturas na estratigrafia arqueológica da Bulgária e da Dalmácia?

Lendas de um grande dilúvio permearam muitas tradições. Em 1876, George Smith publicou suas traduções da escrita cuneiforme preservada em tabuletas de barro cozido da Mesopotâmia – que registraram o que hoje chamamos de Épico de Gilgamesh. Esses fragmentos da grande biblioteca de Nínive falavam, numa língua conhecida como acadiano, de uma época antiga, mesmo quando os primeiros escribas compunham seus registros. Gilgamesh relata uma inundação. Smith estava convencido de que esta era um acontecimento real, sem dúvida o mesmo descrito em Gênesis. Uma tragédia de tamanha magnitude e terror que foi entrelaçada no tecido cultural de todos aqueles que outrora viveram ao longo do Crescente Fértil. Ainda parece surpreendente que as tabuletas de barro reconstruídas tão meticulosamente a partir do terceiro milênio a. C. confirmem uma história que muitas crianças do século XX aprenderam primeiramente no último remanescente de nossa própria tradição oral – suas classes da Escola Dominical.

A suposição natural feita pelos arqueólogos era que o Dilúvio era uma inundação excepcional do Tigre e do Eufrates rios que são imprevisíveis até hoje – que devastou a paisagem da Mesopotâmia. A sugestão extraordinária de Ryan e Pitman é que o dilúvio foi a mais antiga inundação do lago do Mar Negro, carregado como uma memória folclórica junto com a diáspora, cantada e recantada por bardos e guslars por mais de mil anos de cultura pré-literária, antes de ser colocado em argila pelo primeiro daqueles para quem a memória exigia apoio escrito. É uma ideia convincente, até porque é muito simples. Explica o aparecimento de novas culturas após um hiato arqueológico; explica a distribuição de artefatos e a disseminação cultural da lenda do dilúvio; explica a falta de evidência de um evento suficientemente catastrófico nos sedimentos assentados na Mesopotâmia.

A geologia teve um relacionamento longo e intranquilo com o Dilúvio. Evidências geológicas foram usadas primeiramente para demonstrar a veracidade bíblica. O deão Buckland reconheceu ossos fósseis preservados em cavernas em locais tão pouco bíblicos quanto Yorkshire, como prova tangível da catástrofe de Noé; Ele contou os detalhes em um livro notável, Reliquiae Diluvianae ("Relics of the Flood", 1823). A geologia moderna logo desmentiu tais noções – os mesmos esqueletos de cavernas foram reconhecidos como o legado das faunas da Era do Gelo. O dilúvio então foi localizado nas terras da Bíblia. Não muito tempo depois da surpreendente descoberta da Epopéia de Gilgamesh, o grande geólogo da virada do século, Eduard Suess, tentou vincular o dilúvio a uma causa geológica. Ele usou uma linha similar de raciocínio à de Ryan e Pitman para manipular um tipo diferente de catástrofe geológica, e ele fez uma manobra intelectual similarmente ousada e, de fato, pioneira. Talvez Ryan e Pitman devessem ter dado a Suess um aceno como padrinho conceitual – seu nome nem é mencionado em Noah’s Flood. Suess concluiu que o Dilúvio não tinha nada a ver com uma cheia do Tigre e Eufrates. Em vez disso, ele invocou uma massiva incursão do mar sobre a Mesopotâmia: talvez o tipo de tsunami associado a um grande terremoto submarino.

Suess percebeu que a Arca supostamente parou no Monte Ararat – ao norte do Crescente Fértil – na direção oposta ao que poder-se-ia esperar se o Dilúvio tivesse se originado de rios transbordando de água na planície, e drenando em direção ao mar. Quando li pela primeira vez Gilgamesh, lembrei-me do relato de Plínio sobre a erupção do Vesúvio em 79 d. C. e me perguntei se a descrição dos céus negros e escuros poderia ser consistente com uma erupção vulcânica. Stephanie Dalley, a decana dos acadêmicos acádios, lembrou-me, no entanto, que não havia evidência convincente no registro arqueológico da Mesopotâmia de um evento em tão larga escala e catastrófico (a erupção explosiva da ilha de Santorini, no Mediterrâneo, era tardia demais para ser relevante). Certamente, escavações locais registraram inundações na Mesopotâmia, sem dúvida angustiantes para aqueles que viviam às margens do Eufrates, mas insuficientes para fornecer o motor para um milênio de mitos. Ryan e Pitman usam isso como mais uma prova de que a memória da catástrofe tinha até então um período ainda mais remoto. Em suma, a inundação do Mar Negro remove o Dilúvio Bíblico de sua pátria religiosa.

Os geólogos parecem destinados a viver brigando com aqueles que querem interpretar a história da Bíblia literalmente. Ian Plimer, um geólogo da Universidade de Melbourne e especialista em geologia turca, recentemente colocou seus meios de subsistência em risco ao desafiar o que ele vê como um absurdo criacionista. Um grupo de fundamentalistas locais, liderados por um tal Allen Roberts, afirmou ter encontrado evidências “científicas” dos restos da Arca de Noé. Plimer alegou que essa suposta evidência é uma estrutura geológica natural, um sinclíneo localizado a cerca de vinte milhas do Monte Ararat na Turquia – não tão longe quanto a distância por ar partindo-se do Mar Negro[3]. Um sinclíneo é uma estrutura produzida por forças tectônicas suaves, sendo uma dobra em estratos com a forma de uma mão em concha. Se um deles se desenvolveu em leitos de rocha com a espessura certa, ele pode – concebivelmente – assemelhar-se a uma embarcação rudemente entabuada. Roberts foi presumivelmente persuadido por tal ocorrência perto de onde a Arca supostamente estava encalhada. Dois anos atrás, Plimer perdeu um caso no qual ele tentou processá-lo sob a Lei de Comércio Justo da Austrália, a qual exige que os comerciantes não façam alegações enganosas. Ele perdeu porque o juiz Sackville concluiu que a questão não era relativa a “descrição comercial”, mas liberdade de expressão.

A identidade do Dilúvio continua sem comprovação. Estou convencido pela evidência (que Ryan e Pitman organizaram com clareza exemplar) da catástrofe do Mar Negro. Um enorme lago de água doce morreu há mais de sete mil anos e um mar com profundezas envenenadas foi criado em seu lugar. Mas um salto de fé ainda é necessário para vincular este evento com o dilúvio bíblico, para permitir a perpetuação mítica do evento através de tantas gerações e através de uma ampla dispersão geográfica. Há detalhes, como a própria Arca e a identificação do Monte Ararat, ou em algum lugar próximo, como seu ponto final, que parecem muito específicos e inadequados para a lenda do Mar Negro. Mas a explicação mais conservadora – uma inundação na própria Mesopotâmia – também tem suas deficiências. Um evento histórico de tal suposta magnitude deveria ter deixado mais evidência direta do que a existente. Mas certamente a interpretação mais tola é a leitura bíblica que afirma que as rochas são de madeira, e levanta evidências de restos duvidosos para persuadir os devotos a traírem sua racionalidade.

Tradução: Robson Barbosa da Silva


[1] Em francês, “mexilhões marinhos” (nota do tradutor). 
[2] Montes de terra formados com a erosão de antigos locais de ocupação humana (nota do tradutor).
[3] Inglês: not far as the raven flies from the Black Sea (nota do tradutor).

Um comentário: