Tradução do
texto "Most Curious of Seas" (original em London Review of Books), de
Richard Fortey. O autor é, atualmente, pesquisador associado no Museu de
História Natural de Londres.
- Noah’s Flood: The New
Scientific Discoveries about the Event that Changed History, por William Ryan e Walter Pitman
Simon and Schuster, 319 pp, £17.99, Fevereiro de 1999, ISBN 0 684 81052 2
Quando a
água começou a subir, todos os peixes flutuaram para a superfície do lago,
inchados e mortos, ou morrendo convulsivamente. As pessoas do lago observaram
seu modo de vida desaparecer em poucos dias – não havia como parar a inundação.
Um dos anciãos da tribo percebeu que a água adquirira um sabor salgado. Logo a água
estava lambendo as precárias fundações das cabanas de madeira: não havia nada a
fazer senão fugir antes do avanço com o que pudesse ser carregado. Refugiados
aterrorizados de tribos ao leste informaram sobre um grande estrondo. Aqueles
que demoraram se afogaram. Em questão de semanas, o nível da água subiu cento e
cinquenta metros.
Aqueles que
tomaram parte na desesperada diáspora fugiram para o oeste ao longo do vale do
Danúbio, ou para o sul e para o leste, aos pés do Cáucaso. Outros cruzaram o
terreno selvagem para o leste, eventualmente encontrando refúgio em volta de um
lago que antes ficava entre Tien Shan e o planalto tibetano. Algumas tribos,
mais afortunadas ou mais ousadas, penetraram nas Montanhas Taurus e escaparam
para as planícies além, naquilo que hoje é conhecido como Mesopotâmia. Onde
quer que os sobreviventes se estabelecessem, a terrível inundação tornou-se uma
história básica para advertir e aterrorizar a próxima geração, um evento tão
profundamente traumático que foi recontado por mais de mil anos, transmitido na
tradição oral antes de ser inscrito em argila. Ainda hoje, os guslars cantam-no. Isto, Ryan e Pitman nos dizem, foi o verdadeiro Dilúvio, o
evento histórico que conhecemos como o Dilúvio de Noé.
O Dilúvio
foi o resultado de uma inundação de um enorme lago de água doce que se tornou,
em questão de semanas, o Mar Negro. Ele é negro porque a poucos metros abaixo
da superfície é destituído de vida – falta oxigênio – e o fundo do mar é
coberto por lama fétida e escura onde nada além de bactérias pode se
desenvolver. Os peixes florescem apenas na camada superior da água, suspensos
acima das profundezas onde sufocariam em segundos. A transformação de um lago
para o mais curioso dos mares ocorreu quando o Dardanelos se rompeu há mais de
sete mil anos. O Mediterrâneo correu através de um desfiladeiro para as
planícies além no momento em que uma barreira de terra cedeu. Isto, por sua vez,
foi uma consequência da elevação do nível do mar no fim da última época
glacial. Foi uma catástrofe tão completa quanto a ruptura de uma represa
gigante, com uma força 400 vezes maior que a gerada pelas Cataratas do Niágara.
A torrente esculpiu um enorme corte no extremo leste do assoalho do Mar Negro.
Ao contrário de alguns dos eventos que moldaram a história da Terra – impactos
de meteoritos ou colossais erupções vulcânicas – este não foi globalmente
traumático. Comparativamente poucas espécies pereceram e outras novas
invadiram, de sua fortaleza mediterrânea, o recém-salgado mar.
A inundação
do Mar Negro é um fato geológico. Ryan e Pitman descrevem brilhantemente as
evidências que os levaram a identificar a transição catastrófica de lago para
mar. Ainda há um legado. Na superfície, as correntes fluem, ao longo do
Dardanelos, do Mar Negro para o Mediterrâneo, mas nas profundezas há uma
lembrança sombria do Dilúvio – pois uma contracorrente ainda flui na direção
oposta. Os marinheiros sabiam disso nos velhos tempos: podiam navegar contra a
corrente de superfície se afundassem uma rede pesada para sondar essas
profundidades contrárias – a força das profundezas puxava seus barcos contra a
correnteza.
Durante uma
intensa fase de pesquisa no início dos anos noventa, as embarcações
oceanográficas iam e voltavam ao Mar Negro fazendo sondagens e recolhendo
núcleos do fundo do mar, onde os sedimentos haviam acumulado uma história da
inundação. Os navios de pesquisa – com os autores a bordo – descobriram fósseis
de animais que uma vez se deleitaram em água doce: as criaturas que
anteriormente alimentavam os moradores da costa. Os núcleos de sedimentos
mostraram que estes moluscos foram manchados por lama negra. Uma vez inundada
de salinidade, a água foi drenada de oxigênio e permaneceu assim desde então.
Os exploradores descobriram as costas afogadas e mapearam as bordas do antigo
lago. Quando o mar inundou, as conchas de água doce foram substituídas por
amêijoas e mexilhões. Se os homens da tribo esperassem, eles poderiam ter
comido moules marinières[1].
As conchas fósseis também forneceram os materiais que tornaram possível a datação
por carbono da catástrofe. Algo como 7500 anos se passaram desde que o mar
rugiu através do Dardanelos e separou a Ásia da Europa. As pessoas que viveram
em paz por séculos fugiram, mas levaram consigo uma cultura desenvolvida em
tempos de abundância.
Em uma dúzia
de sítios na Europa Central e no Oriente Médio há um súbito aparecimento de
novos artefatos em pilhas de rejeitos e tels[2].
Os fragmentos quebrados de culturas perdidas – cacos e ornamentos descartados –
falam de uma época de imigração. Por que os fazendeiros da “cerâmica de faixas
lineares” repentinamente se espalharam pela Europa a partir do rio Dniester,
mais ou menos na mesma época em que surgiram novas culturas na estratigrafia
arqueológica da Bulgária e da Dalmácia?
Lendas de um
grande dilúvio permearam muitas tradições. Em 1876, George Smith publicou suas
traduções da escrita cuneiforme preservada em tabuletas de barro cozido da
Mesopotâmia – que registraram o que hoje chamamos de Épico de Gilgamesh.
Esses fragmentos da grande biblioteca de Nínive falavam, numa língua conhecida
como acadiano, de uma época antiga, mesmo quando os primeiros escribas
compunham seus registros. Gilgamesh relata uma inundação. Smith estava
convencido de que esta era um acontecimento real, sem dúvida o mesmo descrito
em Gênesis. Uma tragédia de tamanha magnitude e terror que foi entrelaçada no
tecido cultural de todos aqueles que outrora viveram ao longo do Crescente
Fértil. Ainda parece surpreendente que as tabuletas de barro reconstruídas tão
meticulosamente a partir do terceiro milênio a. C. confirmem uma história que
muitas crianças do século XX aprenderam primeiramente no último remanescente de
nossa própria tradição oral – suas classes da Escola Dominical.
A suposição
natural feita pelos arqueólogos era que o Dilúvio era uma inundação excepcional
do Tigre e do Eufrates – rios que são imprevisíveis até hoje – que devastou a
paisagem da Mesopotâmia. A sugestão extraordinária de Ryan e Pitman é que o
dilúvio foi a mais antiga inundação do lago do Mar Negro, carregado como uma
memória folclórica junto com a diáspora, cantada e recantada por bardos e guslars
por mais de mil anos de cultura pré-literária, antes de ser colocado em argila
pelo primeiro daqueles para quem a memória exigia apoio escrito. É uma ideia
convincente, até porque é muito simples. Explica o aparecimento de novas
culturas após um hiato arqueológico; explica a distribuição de artefatos e a
disseminação cultural da lenda do dilúvio; explica a falta de evidência de um
evento suficientemente catastrófico nos sedimentos assentados na Mesopotâmia.
A geologia
teve um relacionamento longo e intranquilo com o Dilúvio. Evidências geológicas
foram usadas primeiramente para demonstrar a veracidade bíblica. O deão
Buckland reconheceu ossos fósseis preservados em cavernas em locais tão pouco
bíblicos quanto Yorkshire, como prova tangível da catástrofe de Noé; Ele contou
os detalhes em um livro notável, Reliquiae Diluvianae ("Relics of
the Flood", 1823). A geologia moderna logo desmentiu tais noções – os
mesmos esqueletos de cavernas foram reconhecidos como o legado das faunas da
Era do Gelo. O dilúvio então foi localizado nas terras da Bíblia. Não muito
tempo depois da surpreendente descoberta da Epopéia de Gilgamesh, o
grande geólogo da virada do século, Eduard Suess, tentou vincular o dilúvio a
uma causa geológica. Ele usou uma linha similar de raciocínio à de Ryan e
Pitman para manipular um tipo diferente de catástrofe geológica, e ele fez uma
manobra intelectual similarmente ousada e, de fato, pioneira. Talvez Ryan e
Pitman devessem ter dado a Suess um aceno como padrinho conceitual – seu nome
nem é mencionado em Noah’s Flood. Suess concluiu que o Dilúvio não tinha
nada a ver com uma cheia do Tigre e Eufrates. Em vez disso, ele invocou uma
massiva incursão do mar sobre a Mesopotâmia: talvez o tipo de tsunami associado
a um grande terremoto submarino.
Suess
percebeu que a Arca supostamente parou no Monte Ararat – ao norte do Crescente
Fértil – na direção oposta ao que poder-se-ia esperar se o Dilúvio tivesse se
originado de rios transbordando de água na planície, e drenando em direção ao
mar. Quando li pela primeira vez Gilgamesh, lembrei-me do relato de Plínio
sobre a erupção do Vesúvio em 79 d. C. e me perguntei se a descrição dos céus
negros e escuros poderia ser consistente com uma erupção vulcânica. Stephanie
Dalley, a decana dos acadêmicos acádios, lembrou-me, no entanto, que não havia
evidência convincente no registro arqueológico da Mesopotâmia de um evento em
tão larga escala e catastrófico (a erupção explosiva da ilha de Santorini, no
Mediterrâneo, era tardia demais para ser relevante). Certamente, escavações
locais registraram inundações na Mesopotâmia, sem dúvida angustiantes para
aqueles que viviam às margens do Eufrates, mas insuficientes para fornecer o
motor para um milênio de mitos. Ryan e Pitman usam isso como mais uma prova de
que a memória da catástrofe tinha até então um período ainda mais remoto. Em
suma, a inundação do Mar Negro remove o Dilúvio Bíblico de sua pátria
religiosa.
Os geólogos
parecem destinados a viver brigando com aqueles que querem interpretar a
história da Bíblia literalmente. Ian Plimer, um geólogo da Universidade de Melbourne
e especialista em geologia turca, recentemente colocou seus meios de
subsistência em risco ao desafiar o que ele vê como um absurdo criacionista. Um
grupo de fundamentalistas locais, liderados por um tal Allen Roberts, afirmou
ter encontrado evidências “científicas” dos restos da Arca de Noé. Plimer
alegou que essa suposta evidência é uma estrutura geológica natural, um
sinclíneo localizado a cerca de vinte milhas do Monte Ararat na Turquia – não
tão longe quanto a distância por ar partindo-se do Mar Negro[3].
Um sinclíneo é uma estrutura produzida por forças tectônicas suaves, sendo uma
dobra em estratos com a forma de uma mão em concha. Se um deles se desenvolveu
em leitos de rocha com a espessura certa, ele pode – concebivelmente –
assemelhar-se a uma embarcação rudemente entabuada. Roberts foi presumivelmente
persuadido por tal ocorrência perto de onde a Arca supostamente estava
encalhada. Dois anos atrás, Plimer perdeu um caso no qual ele tentou
processá-lo sob a Lei de Comércio Justo da Austrália, a qual exige que os
comerciantes não façam alegações enganosas. Ele perdeu porque o juiz Sackville
concluiu que a questão não era relativa a “descrição comercial”, mas liberdade
de expressão.
A identidade
do Dilúvio continua sem comprovação. Estou convencido pela evidência (que Ryan
e Pitman organizaram com clareza exemplar) da catástrofe do Mar Negro. Um
enorme lago de água doce morreu há mais de sete mil anos e um mar com
profundezas envenenadas foi criado em seu lugar. Mas um salto de fé ainda é
necessário para vincular este evento com o dilúvio bíblico, para permitir a
perpetuação mítica do evento através de tantas gerações e através de uma ampla
dispersão geográfica. Há detalhes, como a própria Arca e a identificação do
Monte Ararat, ou em algum lugar próximo, como seu ponto final, que parecem
muito específicos e inadequados para a lenda do Mar Negro. Mas a explicação
mais conservadora – uma inundação na própria Mesopotâmia – também tem suas
deficiências. Um evento histórico de tal suposta magnitude deveria ter deixado
mais evidência direta do que a existente. Mas certamente a interpretação mais
tola é a leitura bíblica que afirma que as rochas são de madeira, e levanta
evidências de restos duvidosos para persuadir os devotos a traírem sua
racionalidade.
Tradução:
Robson Barbosa da Silva
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